Suave é a noite
Publicado em 20 de julho de 2017
“Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.”
Carlos Drummond de Andrade
Domingo fui a uma “clínica de repouso”, numabairro nobre de Porto Alegre, visitar minha ex-sogra que reside lá. Meu filho já havia me alertado de que não existe “ex-sogra” e que esse vínculo eterno para surpresa minha e de outras noras não é excludente, e sim, acumulativo. Alerta para quem já casou mais de uma vez: as sogras incômodas ou não, bem-vindas ou não, somam-se e nunca se subtraem.
Talvez por consciência desse vínculo indissolúvel, por ser a avó de meu filho, sigo hoje mais próxima dela do que era na época em que fui casada com seu único filho. Tarefa/dificílima casar-se com filhos únicos.
Fiquei triste e chocada quando soube que ela teve que deixar sua casa onde viveu com o marido, criou uma família, recebeu seus amigos, muitos amigos por seu temperamento alegre e social. Mas a maioria já morreu e ela decidiu viver mais.
Minha ex-sogra segue sendo aquela linda mulher de imensos olhos verdes, os mesmos que me examinaram de cima a baixo quando a conheci preparando sua incomparável salada de maionese para o churrasco dominical. Só que agora são olhos tristes, emoldurados por cabelos muito brancos e as mãos antes sempre ocupadas com diversos afazeres, ficam cruzadas em seu colo magro e delicado. Não perdeu a lucidez, muito menos a capacidade irônica de observar as coisas da vida. Por isso mesmo é que fica triste e por vezes faz comentários melancolicamente engraçados sobre seus companheiros de casa de repouso:
“- A TV fica ligada, mas o filme é do outro lado da tela bem aqui nessa sala: Zumbis 2: O retorno”… ou, ainda, “Eles têm corpos sem alma. Ficam aí nesse vazio sem saber quem são, onde estão… Não tenho com quem falar a não ser com a equipe que cuida de nós, velhos inúteis”. Ainda, “não digo para as enfermeiras porque são queridas comigo, mas é tão desagradável quando falam alto pensando que sou surda… Difícil ter uma conversa proveitosa: falam ‘pezinho’, ‘mãozinha’, ‘sopinha’ como se além de velha eu tivesse ficando também retardada.”
Suspira e me mostra um senhor muito alto que anda de um lado para o outro: “Estás vendo aquele velho de babeiro? Foi uma pessoa importante no passado e às vezes acha que/manda em todos aqui. E fica dando ordens em altos brados/de fraldas e de babeiro. Não é patético?”
E pergunta com aquele olhar grave: “De que adianta a medicina garantir longevidade se não sabemos mais quem somos e nem o que fazer do resto de nossas vidas?” Penso na ironia da expressão “repouso”. Penso que ela, minha ex-sogra, está correta em seu modo de pensar. Talvez tenha que dizer alguma frase pronta, dessas que a gente repete quando não sabe o que dizer. Me interrompi antes porque me ocorreu algo que decidi compartilhar com ela:
-Dignidade, eu disse.
E ela: –“????”
Repeti:
– Dig-ni-da-de.. -Eles, os médicos, fazem o que podem porque alguém quer seguir vivendo. O resto, a dignidade, a busca de respostas para essas perguntas cabe responder quem está velho hoje e quer seguir vivendo (razão pela qual toma os remedinhos do coração) e também quem ficará velho amanhã. Acho que temos/que nos perguntar e nos responder sobre o que queremos da vida e como desejamos que seja o resto de nossas vidas. Encontrar as respostas porque cada um deve ter as suas sempre diferentes e sempre únicas.
“- Já trabalhei muito na vida. Isso não quero mais fazer, mas queria estar viva para ver meus bisnetos”, disse ela. Mas meu pensamento já estava longe nessa coisa de velhice prolongada indefinidamente pela medicina. “Sabe, acho que essa longevidade propiciada é como um bônus. A velhice é como um cômodo fechado de nossa casa. Um espaço que não ocupamos, /mas um dia resolvemos abrir porque todos os outros cômodos já foram visitados e vividos por nós. Então, abrimos o cômodo da velhice para examinar, explorar, saber para que serve e inventar um modo muito particular de descobri-la, de participar dela”, disse.
Ela sorri e acrescento que cada um inventa o seu modo de ocupar esse lugar novo … temos que ter a dignidade, a grandeza e a esperteza de usar bem esse cômodo para que não fique incômodo. Ela ri do meu trocadilho/e diz:
“-Tem dias que estou ótima, mas tem outros que não sirvo para nada. A memória não funciona. Fico muito aflita… Fico aflita sem saber por quê.”
Lembrei dela alguns anos antes, ávida leitora, lendo tudo de F Scott Fitzgerald.
-Abandonaste o teu amigo F Scott?, pergunto eu. “Fitzgerald? Ah, sim, faz tempo … Não tenho lido mais nada.”
-E será que ele gostou de ter sido abandonado por ti? De que adianta te queixares de abandono se tu mesma tomas a iniciativa de abandoná-lo? Não te dás conta de que tu precisas muito dele e que ele precisa de ti para viver? Quando/tu abres “Suave é a Noite”, ele salta para fora do livro contente da vida com whisky on the rocks e vem ocupar o teu cômodo! Ela ri e canta um trechinho:
-“Tender is/the/nigth.” Suspira… Tony Bennet. Ele ganhou o Oscar de melhor canção para o filme inspirado no livro de FScott.
A essas alturas eu já estava vasculhando o youtube com um achado extra: E olha aqui, mostrei a ela. Aquele velho louco do Bennet anda de parceria com a Lady Gaga!! Conto a ela… E ficamos as duas, cabeças muito próximas, espiando pela reduzida tela de meu celular aquele encantador encontro de duas gerações de músicos cantando jazz. Tonny Benett com a mesma voz e Lady Gaga afinadíssima de cabelos cor-de-rosa.
– “??? Lady Gaga? Que Lady Gaga?”
– Essa Lady Gaga: E canto aquele pequeno refrão: “Ra ra-ah-ah-ah, Roma Roma-ma, GaGa oh la -la “!!!
– “Ah, essa Lady Gaga?” Ela ri alto agora…
-A Gaga e o gagá. Que dupla!!! Sempre adorou cinema e eu surpresa que ela ainda lembrava daquele ” bolachão” tocando na eletrola no início dos anos 60, sucesso absoluto em todas as paradas musicais, então entendendo porque lembramos melhor com o passar da idade fatos vindos do passado remoto. Que beleza. Podemos contar com a memória pregressa e ao mesmo tempo com a tecnologia milagrosa do pequeno celular …
Ela completou agora em português:” a noite é de nós dois…”. Falamos então do cérebro dos idosos, o cérebro que precisa de exercícios para não atrofiar e eu repito a ela temendo que se magoe comigo: “Pois é tua a responsabilidade de exercitar o cérebro para que não enferruje”.
Mas sai dali com a impressão de que a responsabilidade era minha também, indo direto para uma livraria. Voltei em seguida com um Caça Palavras, Palavras Cruzadas, uma revista de moda (ela adora), lápis, borracha e apontador. Que divertido fazer um Caça Palavras. Mais divertido ainda foi quando em meio àquele emaranhado de letras minha ex-sogra encontrou a palavra “aflição”. Sorriu de contentamento porque agora jogava com prazer em vez de estar simplesmente “jogada a bel prazer”. Em seguida pegou o lápis e circulou rapidamente a palavra aflição para marcar algo que consegue entender e decifrar no espaço do sem nexo e do sem sentido.
-Viste? Eu disse a ela. Antes estavas aflita e agora cercaste e prendeste tão bem a tua aflição com esse lápis de ponta afiada que és tu quem manda nela e não é ela quem toma conta de ti. Eta palavrinha danada. Foi laçada e apealada!!
E assim voltei para casa enquanto aquela senhora de grandes olhos verdes encontrava as suas palavras e com elas os/inúmeros sentidos possíveis para viver e continuar vivendo. Acho que ela nem percebeu que eu havia saído de mansinho enquanto/explorava ela aquele universo/outro. Não sei o que vai ser amanhã, mas sei que velhos ou novos não importa e por isso é tão ridículo essa coisa de rotular de “melhor idade “.
O desafio/da vida, afinal, é sempre o mesmo: que sejamos capazes de escolher sempre, de dar sentido e lugar a cada momento da vida. É nossa responsabilidade.
O que determina a longevidade senão o desejo, a avidez em reencontrar nossos F Scott Fitzgeralds da vida? Todo mundo tem que ter o seu F Scott!! Procure-o! Encontre -o! É por ele que tomamos o café da manhã todos os dias sem esquecer o remédio do coração. Todo mundo é um pouco Zelda, todo mundo é um pouco F Scott também (quem conhece essa tocante história de amor sabe o quanto Scott zelou de verdade por ela). Não importa nem sexo nem idade, importa sim assumirmos com coragem sempre aquilo que escolhemos para nós… E que suave seja a noite (velhice) para cada um de nós.
Texto publicado na edição 34 da revista Gente que Faz
Por Viviane Jacques Sapiro
Fone 51. 999828715
Email: viviane.jacquessapiro@gmail.com
Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Especialista em Psicologia Clínica Hospitalar
Membro do Serviço de Saúde Mental do Hospital da Criança Conceição
(Seguir outros textos da autora pelo google, facebook e site da APPOA)