Sobre crianças e museus

 

Por Viviane Jacques Sapiro

“No momento em que entramos em um museu, devemos estar conscientes de que ali é um universo de representação.” Martha Medeiros

Inumeráveis museus no mundo têm propostas especiais (o que não é imprescindível) para o público infantil

Páscoa de 2001. Minha sobrinha Eduarda, a Duda, com dois anos, entra na sala com uma tiara de orelhas de coelho e um cestinho com ovos de chocolate. A mana Rafaela, então com sete anos, havia passado horas ensinando à Duda pular com os dois pés juntos como um coelhinho. Façanha muito difícil para alguém de dois anos. Mas as duas irmãzinhas trabalhando em conjunto conseguiram e estavam fascinadas com o êxito de Dudinha, que, saltitando graciosamente de um lado para outro, fazia sucesso entre os adultos da sala, enquanto distribuía os ovos de chocolate. Lá pelas tantas a pequena parou de saltitar e com aquele olhar muito azul e um pouco aflito, falou baixinho em meu ouvido:

-“Tia Vivi, NÃO é um coelhinho: é a Dudinha!!!”

E agora se ela realmente for um coelhinho da Páscoa??? Se Duda não me avisa que não é um coelho, qual a garantia que ela tem, aos dois anos, de não cair na armadilha – e realmente tornar-se um coelho se essa condição for confirmada pelo olhar dos adultos? É lógica da criança: sou aquilo que o Outro (o adulto referência de amor e de reconhecimento, o que me constitui) quer de mim. E se não sou, corro o risco de não existir…

Em Viena, o Schönbrunn, por exemplo, tem um amplo e encantador zoológico jardim e possui um tour específico para crianças onde pode-se visitar os aposentos das crianças pertencentes à realeza austríaca que lá viveram, como a nossa Imperatriz Leopoldina Pode-se brincar, vestir-se de rei e rainha, conhecer a história de Sissi, a Imperatriz e acabar o tour fazendo pãezinhos doces na cozinha do palácio.

A passagem com a pequena Duda é o testemunho do que o ocorre com crianças. O mundo dos pequenos não é o mesmo mundo dos adultos mesmo que ocupem os mesmos lugares geográficos. Adultos saudáveis têm clara a noção da diferença entre a realidade e a fantasia. Crianças saudáveis, não. Então diria que, quando se trata de estarmos dividindo o espaço com uma criança, essa frase deve ser reformulada: “no momento em que entramos em um museu, acompanhados de uma criança …” E que experiência magnífica para uma criança poder usufruir dos espaços e temáticas em museus. Recordemos o exemplo do Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS.

O Museu de Arte Moderna de Nova York incorporou a ideia do filme “Uma noite no Museu” e promove noitadas para crianças e suas famílias,, tamanho o sucesso da iniciativa.

As crianças constroem as fronteiras entre real e imaginário passo a passo SE lhe são dadas oportunidades saudáveis para vivenciar assim, no calor amoroso e protetor de uma família e de uma sociedade saudável, a importante possibilidade de primeiro ter condições estruturais de fazer com o real e o imaginário uma articulação com o simbólico que vai se construindo. É por isso que apenas as crianças acreditam piamente em Papai Noel, Coelho da Páscoa, Monstros e Super Heróis e encarnam o Batman e a Cinderela sem estarem psicóticas.

Recordemos o exemplo do Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS

Após o fechamento e possivelmente em nome da liberdade de expressão e em defesa da exposição, foram feitas comparações daquela exposição à obra do Queer Museum e à performance do MAM com a de Gustave Coubert, que está no Museu D’Orsay. Reforçando a ideia de que é aceitável e cessível ao público infantil houve alusões à campanha do setor de comunicação do mesmo D’Orsay que em 2015 espalhou sobre Paris outdoors que convocavam os pais a trazerem seus filhos “para ver gente nua”. Essa mesma campanha foi recentemente repetida em 2017: “tragam seus filhos para ver gente nua.”

É curioso e um pouco cômico que adultos justifiquem o acontecimento do lado de cá justamente nesse “apelo ao vouyer” que toda a criança, em certa fase do desenvolvimento, é. Por que digo isso? Porque obviamente, dentro do D’Orsay não há ninguém nu e se por ventura alguém se desnudar os seguranças do museu o retiram de lá. Ali sim é tranquilamente um universo de representação, uma verdadeira homenagem à capacidade humana de criar, a partir de suas pulsões mais primitivas, o belo… E os “nudes” lá estão, puro trabalho de arte, em forma sublime, elevada a uma categoria em que o homem consegue chegar às alturas de se assemelhar ao divino, pelo dom da criação. Onde há arte, há sempre sublimação das pulsões primitivas. E onde há sublimação do primitivismo que nos é imposto pela nossa origem na natureza, a arte estará presente garantindo a nossa capacidade de ceder do gozo para a cultura.

Para ver “A criação do Mundo” de Coubert, ainda assim precisamos entrar em uma sala especial, estar munidos de um mapa ou com orientação dos guias do museu. Neófitos sozinhos e desavisados jamais a encontrarão. Jamais. A obra de Coubert não está exposta a quem entra desavisado. Ela não está exposta ao primeiro olhar.

Jacques Lacan, que foi último dono particular do quadro de Coubert, mantinha a obra em sua casa de campo, coberta com um véu. Ou seja, velada ao olhar, encobrindo propositadamente a nudez. E com isto Lacan quis nos dizer alguma coisa sobre o efeito do olhar. A importância de um certo velamento onde nem tudo é exposto. Coubert dá um título e não por acaso, à sua obra: “A Origem do Mundo “. Ele abre espaço para quem tem a coragem de se confrontar para mais além de uma genitália feminina ao inexorável destino humano como seres sexuados, saídos de dentro do corpo de uma mulher. E que complexo é para alguns justamente tolerar o efeito também do real da anatomia presente no quadro de Coubert.

Mais de 1 milhão de pessoas visitam o “Children’s Museum of Indianópolis”, o maior museu do mundo para crianças, em Indiana, nos EUA, todo o ano e muitos vêm a cidade especificamente para visitá-lo.

De alguma forma, a referência de Coubert tem a ver com as reminiscências de Freud, quando em suas recordações de infância não deixa de registrar em um propositado latim, que o protege afastando-o do alemão, sua língua materna, o momento em uma viagem de trem, quando viu “mater nundan”. Sua jovem mãe, em roupas íntimas e se trocando para dormir, certamente lhe influenciou no desenvolvimento teórico sobre sexualidade infantil. A recordação infantil ou o fantasma velado de nossas produções inconscientes da “mater nundan” reaparecem certamente em Coubert.

Nesse nem tudo, não todo, Coubert nos faz lidar com as nossas faltas, nos submete a um corte, a uma borda, a um limite dentro do qual temos de nos organizar como sujeitos a quem ou aos quais nem tudo é possível.  Atualmente as pessoas não entendem o que significa o “nem tudo”. O meio termo que não está ligado nem à direita e nem à esquerda, mas nos deixa entregues aos limites do simples bom senso de saber dosar pesos e medidas.

A ideia do conservadorismo e da moral é percebida sempre como algo negativo. Por quê? Precisamos lembrar o que nos diz o dicionário: conservar significa manter em bom estado, não permitir que se deteriore e que apodreça, ou seja, é o contrário da morte. E moral é diferente de moralismo. Moral é o filtro que nos preserva, é o “airbag”, é o freio do carro antes que capote. Ter moral é saber conservar e esperar o sinal verde antes de atravessar uma rua, sem deixar de atravessar. Mas esperar o momento oportuno para não sermos esmagados pelo primeiro caminhão desavisado. Tudo o que é extremo mata: mata a nossa humanidade, a nossa sensibilidade, nossa capacidade de perceber os limites e extremos, e certamente que mata também a arte sutilmente substituída por modos de expressão que precisam ser reconhecidos, classificados e nomeados. Mas entre eles, certamente, a pornografia cujo fim é apenas levar o olhar até o gozo sexual, já está presente: prestem atenção.

Não poder ponderar sobre os limites, julgar o que é bom ou ruim, próprio ou impróprio a partir apenas de nosso restrito conjunto de valores sem escutar e nem reconhecer o outro e muito menos os efeitos daquilo que podemos causar no outro a partir de nossos atos é no mínimo temerário. Temos muito o que aprender com esse “epis-ódios”…

O efeito de chocar, repugnar, assustar, não é elaborado a priori desde uma percepção já envolvida em uma percepção moralista. O efeito vem antes do conjunto de valores e julgamentos. Se há a produção de um efeito bizarro, esse mal-estar parece estar ligado a uma subversão da função da arte e como adultos podemos explorar esse tema até a exaustão, sem problemas. O que é preciso  compreender é que a imagem, seja qual for, não pede licença para entrar. Ela é invasiva. Se pais entram com seus filhos pequenos para ver uma exposição cujo efeito não é o das obras do D’Orsay ou do Louvre, fascinação, o enlevo e a empatia imediata, precisam estar cientes. A infância precisa de um certo resguardo em ralação ao sexual explicitado para que não haja uma intervenção desastrosa para estruturação psíquica em tempo de construção nas crianças. Quanto mais vemos o número crescente de crianças que não aprendem a ler, por exemplo, mais constatamos que o estímulo precoce a tudo o que é da genitalidade está relacionado à perda da condição de aprender. Porque não, pura e simplesmente, protegemos as nossas crianças com o amor e o zelo ao futuro da humanidade, se é que a humanidade pensa em futuro?

Como adultos, temos que repensar sobre crianças e museus. A cena do museu onde se coloca que o homem nu é “apenas uma representação do homem ancestral” deve ser considerada não sob o ângulo do homem adulto (Que idade? Uns 40?), mas sob o ângulo de uma criança. Não é uma gravura, uma pintura, um livro que se fecha rapidamente ao se vislumbrar algo que assusta. Está ali em carne e osso sem que a criança possa ter o mínimo controle, o homem adulto, grande, genitália exposta, pele, pelos, cicatrizes, suor, respiração, calor, pulsação. E o convite explícito, melhor, uma convocação autoritária para participar da cena que funciona como o “retorno do não simbolizado desde o real”!!!

Para Freud, em Totem e Tabu, o homem primitivo é o pai da horda que se apodera e traga todos os filhos e filhas. Ele se reatualiza nos medos infantis de monstros, lobo mau, bicho-papão, figurativamente dentro da nossa mitologia que criou a humanidade. E se esses medos se encarnam de verdade, se isso não bastar, Martha, pense então nas obras de Renée Magritte ” Ceci n’est Pas une pipe” (Não é um cachimbo /Não é um coelhinho). A representação figurativa de um cachimbo garante que o cachimbo real “não está ali”. Da mesma forma como a criança pede ao adulto a confirmação e a garantia de que não corre o risco de se transformar irreversivelmente no coelhinho. Essa é condição simbólica que dá à representação a de ausência/presença e que não está amadurecida na criança e que nos tira da loucura.  A obra de Magritte ajuda a entender melhor o que realmente significa representação. A ironia dos tempos atuais é que justamente para se afirmar a cultura estamos recuando  à natureza.

Por Viviane Jacques Sapiro

Fone 051 99828715

Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto alegre

Especialização em Psicologia Clínica Hospitalar

Membro do Serviço de saúde mental do Hospital da Criança Conceição

Seguir outros textos da autora pelo Google , Facebook e site da APPOA

 

Publicado na edição 36 da revista http://gentequefaz.com/

 



Tags relacionadas

Comente



Compartilhe!







POSTS RECENTES

Image

Um cenário de sonhos para um casamento inesquecível em Barcelona

Com 105  anos de tradição, esta histórica propriedade propõe conforto, privacidade e serviços personalizados para  esses momentos especiais em um endereço que inspira paixão e celebração, em uma das cidades mais românticas da Europa A capital da Catalunha, na Espanha, é um dos destinos mais românticos da Europa. Nesse  cenário, o Majestic Hotel & Spa Barcelona acolhe […]

LEIA MAIS
Image

Em Porto Alegre, encontro com os hoteis mais incríveis do mundo

Com encontros B2B no Brasil e na Argentina, o evento reuniu em mais um ano agentes de viagens, hotéis Leading e imprensa especializada A The Leading Hotels of the World realizou novamente este ano seu South America Showcase Series, neste ano com a presença de mais de 30 hotéis de luxo de 10 países. Gerentes e diretores divulgaram […]

LEIA MAIS
Image

Cerejeiras em Flor, no Japão. Quando ir?

Visitar o Japão durante a época de florescimento das cerejeiras, conhecida como “Sakura”, é uma experiência que captura não apenas a beleza estonteante da natureza, mas também a essência profunda da cultura japonesa. A melhor época para testemunhar este espetáculo varia de acordo com a região, mas geralmente ocorre entre o final de março e […]

LEIA MAIS