Ivan Izquierdo: “somos aquilo que decidimos esquecer”
Publicado em 14 de setembro de 2017É a memória que vai ajudar que o mesmo mal não nos atinja duas vezes!
O neurocientista Iván Izquierdo é referência mundial em memória e um dos cientistas mais respeitados do mundo. Uma de suas obras, “A arte de esquecer”, mostra que cada um de nós é quem é porque tem suas próprias memórias e aprender a distinguir o que devemos deixar de lado e o que guardar é uma arte difícil. “É a sua memória que vai ajudar que o mesmo mal não nos atinja duas vezes”, afirma.
Ao final da leitura da obra, que mostra que esquecer é também arte, é possível compreender que esquecemos para poder pensar, esquecemos para não enlouquecer e para poder conviver e sobreviver. Izquierdo defende que o esquecimento é inevitável e necessário, que precisamos abrir espaço no cérebro para novas memórias. “Somos também aquilo que decidimos esquecer”, afirma Izquierdo. Uma entrevista com ele, que no conjunto de sua obra já recebeu mais de 10 mil citações, sempre é enriquecedora. Dos 17 livros que publicou, 6 são de ficção e de crônicas. O também contumaz leitor de Jorge Luís Borges afirma que ler é o melhor exercício para a memória.
Por que esquecemos? Há razões para justificar o esquecimento?
Esquecemos a maior parte do que aprendemos. Por exemplo, ninguém se lembra de cada um dos minutos da tarde de ontem; foram esquecidos e são irrecuperáveis. O principal mecanismo é a falta de repetição das memórias, a falta de uso das sinapses, as atrofias, como demonstrou John Eccles (Prêmio Nobel 1963) nos anos 50.
Do desenvolvimento da memória na criança, o que muda com a idade?
Fundamentalmente o uso da linguagem. Difícil lembrar de acontecimentos ainda que importantes (aprender a caminhar, falar) anteriores à idade a partir da qual traduzimos tudo em linguagem (por volta dos 3 anos). A partir daí tudo continua mais ou menos igual, mecanisticamente, só que cada vez com maior conteúdo até a extrema velhice, na qual gravamos menos memórias e, por morte neuronal, perdemos muitas.
Há memórias que queremos guardar, há memórias que queremos extinguir. Isso é possível?
Sim.
É também possível que isso ocorra de forma involuntária?
Geralmente ocorre de maneira involuntária.
O que explica pessoas que guardam mais as memórias negativas ou tristes?
Sempre guardamos mais as memórias tristes ou ruins, por motivos defensivos. Não queremos que o mesmo mal nos atinja duas vezes. Guardamos mais as memórias adquiridas com mais alerta emocional. As situações de medo, perigo ou desgraça costumam ser as de maior carga emocional.
Toda memória envolve emoção?
Sim. No humano não existem momentos absolutamente não emocionais.
De que forma o uso constante das novas tecnologias (celulares, facebook, Google…) afeta a memória?
Em geral, aumentam. Poupam nosso cérebro de dedicar muitas sinapses a fazer memórias, que poderão ser encontradas nos “periféricos” (celulares, google, etc).
Quais são os maiores fatores de risco para a memória?
A depressão, o estresse, as doenças neurodegenerativas, o álcool, outras drogas de abuso.
Muitos já devem ter lhe perguntado, mas que práticas remetem à boa saúde da memória? Que exercícios podemos fazer para manter a memória viva?
A leitura é o melhor exercício para praticar a memória. Nenhum outro chega perto. Os atores e professores, membros das duas profissões em que mais se lê, costumam ser os que melhor memória tem, até uma idade mais avançada. Veja Paulo Autran, a Fernanda, Max Von Sydow, Christopher Plummer.
Como explicar que a perda de neurônios, em idade avançada, não afetou a qualidade dos contos de Jorge Luís Borges ou ele aprender inglês arcaico, já octogenário? Ou os quadros de Matisse, também em idade avançada?
A memória começa a se perder por causa da idade geralmente mais tarde do que os 80 anos, e alguns a perdem mais do que outros.
A memória pode incorporar ficção?
Sim, sem dúvida. Boa parte de nossas memórias são falsas em parte.
Um de seus livros é “Silêncio, por favor”, que trata o tema ruído sob várias perspectivas. Os bombardeios de diferentes tipos de ruído aos quais estamos toda hora sendo submetidos afetam nossa memória?
Podem afetá-la, mas muito menos do que pensa o grande público. Borges, Matisse, Verdi, a Rainha Victoria e Deng Zhao-Ping sofreram tanto ruído como os demais e não perderam a memória.
O que ainda o intriga para descobrir na seara da memória?
A curiosidade é meu motor principal. Enquanto a tenho, seguirei intrigado. De momento, ainda falta descobrir muitos mecanismos chaves das memórias.
Pessoas de mais idade constantemente evocam memórias da juventude. Elas predominam?
Borges disse que os velhos preferem se lembrar dos tempos da felicidade, da juventude, em que namoravam, dançavam à noite toda, jogavam bola, etc., e não dos tempos mais recentes em que os velhos têm mais perdas e mais problemas de saúde para se lembrar (amigos que morreram, artrite, etc.).
O que o levou ao interesse pelo estudo do sistema nervoso e da memória?
Os mistérios, a aventura.
Ter Alzheimer algum dia lhe preocupa?
A quem não lhe preocupa?
Lemos que seu pai desenvolveu, muito tarde, é verdade, o Alzheimer. Como Izquierdo trabalhou a questão e como podemos da melhor forma interagir com pessoas que sofrem da doença?
Com amor. Com muito amor, lembrando sempre dos bons momentos de antigamente ou do mesmo dia, e deixando de lado os males, às vezes, tão dramáticos, da doença atual.
Alzheimer pede amor
Amor é sua receita para interação com quem apresenta Alzheimer e, então, fala com autoridade. Seu pai, o farmacologista Juán Antonio Izquierdo, morreu aos 82 anos com Alzheimer. Em determinada entrevista Izquierdo relembrou uma visita que fez ao pai doente, em Buenos Aires. Estavam a sós quando Izquierdo levantou-se para ir ao banheiro. Ao passar pelo pai, fez-lhe um pequeno afago na cabeça. Na volta, percebeu que o pai estava com os olhos úmidos e ouviu dele:
– Ei, Iván, pega essa caixinha aí. Agora venha comigo ao banheiro. – Preciso ir junto? – Precisa. E quando chegaram lá, o pai disse: – Pega essa caixinha e vira toda no lixo. – Pai, mas esse é o seu remédio. Custa dinheiro e é para sua memória. – Pode jogar tudo fora. Esse carinho que você fez na minha careca vale muito mais que esse remédio, que não serve para nada e só me causa diarreia.
“Nesse dia, e em tantos outros, me dei conta de que ele tinha razão. Fui ficando mais tempo a seu lado e sua memória foi melhorando.” Duas semanas depois, suspenderam o tratamento com tacrina, remédio que já não fazia mais efeito algum, devido ao avançado estágio da doença. “Ainda assim, por muito tempo depois disso, minhas mãos no seu ombro continuaram a ter seu valor terapêutico”, conta o filho.
Por Neiva Schneider|Fotos Gilson Oliveira – divulgação PUCRS
Publicado na edição 18 da revista Gente que Faz