Zico apita para solidariedade

Endeusado especialmente por japoneses e flamenguistas, o Galinho de Quintino é um dos maiores nomes do futebol brasileiro. E, mesmo após a aposentadoria, dedica-se aos projetos sociais e jogos beneficentes, como uma forma de retribuir do que o esporte lhe deu

Lajeado recebeu, em dezembro, a segunda edição do Craques Solidários. Criado em 2016, a primeira edição reverteu uma tonelada e meia de alimentos e cerca de R$ 17 mil para APAE da cidade. Nesta edição, realizada no estádio da universidade local, estiveram presentes diversas personalidades que marcaram época, como Dinho e Paulo Nunes, campeões da Libertadores em 1995 pelo Grêmio, o lateral-direito Maicon, presença constante na seleção brasileira e o técnico e comentarista esportivo Cláudio Duarte, com extensa carreira, sobretudo pelo interior do Rio Grande do Sul. A renda e os donativos também tiveram como destino a entidade de apoio aos excepcionais.

Zico, capa da revista Gente que Faz edição 37

Ainda havia a estrela principal do evento. Se chegasse a Lajeado como Arthur Antunes Coimbra, talvez apenas os mais aficionados pelo futebol fizessem a associação entre o nome de batismo e o apelido, mundialmente conhecido, do jogador em questão. Zico brindou o Vale do Taquari com um pouco da sua técnica e do seu carisma, eternizados entre as décadas de 1970 e 1980, principalmente com a camisa do Flamengo. Aos 64 anos, o ex-jogador aceitou o convite dos organizadores para ser uma espécie de embaixador dessa edição dos Craques Solidários. O Galinho de Quintino levou à loucura as cerca de 4 mil pessoas que lotaram o estádio e, apesar da idade, mostrou que o futebol permanece intacto na talentosa perna direito do craque.

A história de Zico no futebol é riquíssima em títulos e conquistas. O pai, Seu Antunes, sempre apoiou os filhos a torcerem pelo Flamengo, clube de coração. Para lá, o então menino foi levado em 1967 com o objetivo de ser lapidado nas categorias de base. O talento precoce lhe fez romper barreiras, e com 18 anos estreou pelos profissionais do Rubro-Negro. Em agosto de 1971, saiu do banco de reservas para, logo na sua primeira partida, marcar seu primeiro gol como profissional, diante do Bahia, em Salvador.

A euforia da torcida com o promissor meia foi arrefecida, uma vez que os próximos grandes passos do Galinho de Quintino – apelido dado na época pelo narrador Waldir Amaral em referência ao bairro no qual residia no Rio de Janeiro (Quintino Bocaiúva), pelo passado humilde de sua mãe, dona Mathilde, cuja atividade principal era comercializar frangos, e pelo porte físico minguado no início da carreira – ainda demorariam a acontecer. Por conta do seu físico frágil, Zico passou por um reforço muscular que lhe fez ganhar 16 quilos e 11 centímetros em três anos. A partir daí, começou a empilhar recordes e premiações.

Até hoje, Zico ostenta duas marcas importantes: é o maior artilheiro da história do Flamengo, com 509 gols; e também o jogador que mais balançou as redes do Maracanã – foram 333 tentos. Levantou, com o time carioca, os títulos mais importantes da história do clube, em 1981, quando venceu a Libertadores e o Mundial e marcou época na considerada Era de Ouro do Flamengo. Zico ainda jogou na Udinese, da Itália, e o Kashima Antlers, do Japão. Antes de ir para o clube japonês, já havia se aposentado, mas decidiu retornar aos gramados no início da década de 90.

Zico e o empreendedor José Paulo Richter, idealizador dos Craques Solidários

Apesar da brilhante trajetória nos clubes, com a camisa amarelinha, o Galinho amargou algumas decepções. Esteve em três Copas do Mundo, duas delas marcantes para o futebol brasileiro. Em 1982, fez parte de um dos mais brilhantes times já formados para um Mundial, com Falcão, Sócrates e Telê Santana à beira do gramado. Naquela oportunidade, o Brasil era considerado favorito ao então tetracampeonato, mas esbarrou na Itália, de Paolo Rossi, autor de três gols que tiraram o Brasil da Copa do Mundo na derrota por 3×2, conhecida como a Tragédia do Sarriá, estádio espanhol onde a partida foi disputada. Quatro anos depois, no México, viu a equipe novamente cair, dessa vez para a França. Zico fora criticado por desperdiçar um pênalti naquela partida, a sua última em Mundiais. Mesmo sem o principal título para um jogador, o jornalista Fernando Calazans cunhou uma das frases mais marcantes sobre a passagem do Galinho pela Seleção: “se Zico não ganhou uma Copa do Mundo, azar da Copa”.

Mesmo após a aposentadoria, Zico se mantém ligado ao futebol e é reconhecido por fomentar os jogos beneficentes ao redor do Brasil. Além da partida no Vale do Taquari, ele esteve presente no Lance de Craque, iniciativa encabeçada por D’Alessandro, no Estádio Beira-Rio e foi o protagonista do Jogo das Estrelas, organizado por ele no Maracanã, em sua 14ª edição. Mesmo dividindo as atenções com a rotina na televisão, como comentarista, Zico procura abraçar todas as causas com o intuito de beneficiar os mais carentes. “Minha história se iniciou em um bairro pobre do Rio de Janeiro (Quintino). Sempre que posso vou até o bairro onde dei meus primeiros chutes na bola, ainda na rua, e que me emprestou até o apelido que ganhei no futebol”, explica o craque.

Nessa entrevista, Zico nos contou um pouco da sua trajetória. Foi, por exemplo, Secretário de Esportes durante o governo Collor e ganhou a alcunha de “Deus do Futebol” no Japão, após jogar e treinar a seleção local. Há pelo menos duas estátuas de Zico na cidade de Kashima, sede do clube no qual ele atuou. Com passagens pela Índia, Turquia, Iraque e Rússia, fez carreira como treinador e gerente de futebol. Criou o CFZ, clube especializado em trabalhar com garotos e propiciar oportunidades a eles para se tornarem – quem sabe – um novo Zico e o projeto social Golaço Social, focado em garotos em situação de vulnerabilidade. E, claro, rememorou seus mais ilustres momentos com as camisas do Flamengo e da Seleção.

Gente que Faz – Zico, você sempre foi muito ligado às ações beneficentes em jogos como este, que ocorreu em Lajeado. O que lhe fez aceitar o convite para vir ao Rio Grande do Sul e participar dessa partida?

ZICO – Eu sempre participei de jogos beneficentes. Estive em Cariacica/ES, em uma partida organizada pelo Sávio (ex-jogador) em prol da Associação dos Amigos dos Autistas do Espírito Santo (Amaes). Também organizo com meu filho Júnior o já tradicional Jogo das Estrelas, no Maracanã, com toda a renda revertida para instituições de caridade. Sei da importância desses eventos. Em relação a Lajeado, o Juca me convidou para o evento Craques Solidários e foi um prazer jogar no belo Estádio Olímpico da Univates. Também estive presente no Lance de Craque, do D’Alessandro, no Beira-Rio, então procuro participar sempre que posso.

Gente que Faz – O que você poderia nos contar sobre o seu projeto, o Golaço Social?

Zico – Diante da necessidade de atenuar a defasagem entre as classes sociais e mobilizar recursos para melhorar as condições de vida de parcelas desfavorecidas da população, resolvi criar o Projeto Golaço Social. Ele é direcionado para interesses de crianças e adolescentes que veem o futebol como ideal de realização pessoal. Justifica-se esta iniciativa pela possibilidade de usar o futebol como um instrumento de promoção sociocultural em nossas comunidades. Temos convicção de que o esporte, em particular o futebol, é uma das ferramentas mais eficazes para educar e socializar esses jovens em questão. Minha história no esporte se iniciou em um bairro pobre do Rio de Janeiro (Quintino). Sempre que posso vou até lá, onde dei meus primeiros chutes na bola, ainda na rua, e que me emprestou até o apelido que ganhei (Galinho de Quintino). As Escolas Zico 10 seguem um padrão específico de treinamento com o intuito de capacitar e fazer uma constante avaliação para controle de resultados. Mais que conquistas de títulos, o futebol pode representar para as futuras gerações a conquista da cidadania e da transformação social. Muitos acreditam no esporte, mas poucos investem nele.

Gente que Faz – A sua ligação com o Japão é muito forte. A prova disso é que há uma estátua em Kashima, na frente do estádio do Kashima Antlers, ainda da época de jogador, além de ter sido técnico da seleção nipônica. Como é a sua relação com o país?

Zico – Em 1991, recebi o convite para voltar a jogar futebol. Eu estava aposentado desde 1989 e mantinha a forma defendendo a Seleção Brasileira de Masters, em amistosos pelo Brasil e pelo mundo. A relação com os japoneses vinha desde a conquista do Mundial Interclubes pelo Flamengo, em 1981, quando fui eleito o melhor em campo na final contra o Liverpool. Eles estavam dando os primeiros passos rumo à profissionalização do futebol, então fui convidado pelo Sumitomo Metals, que depois mudou de nome, para Kashima, e aceitei o desafio. Fiz um trabalho bom e fui homenageado com uma estátua na entrada do estádio do clube. Fico feliz, afinal é um dos times mais importantes do futebol japonês. Fui roupeiro, massagista, treinador, fiz de tudo um pouco. Depois de desbravar o esporte por lá, tive a honra de ser convidado para ser treinador da seleção japonesa. Foi uma experiência vencedora e marcante. Após a profissionalização, o Japão esteve em todas as Copas do Mundo. Sou o primeiro jogador de futebol a pisar no hall da fama do Japão. Quando estou lá é como se eu estivesse no Brasil, eles têm um reconhecimento muito grande pelo trabalho que desenvolvi no país. É gratificante ver esse reconhecimento, pois foram 15 anos maravilhosos vividos com a minha família.

Gente que Faz – E o Flamengo? Foi o clube onde você surgiu, és o maior goleador da história rubro-negra, idolatrado pela torcida… O que lhe vem à cabeça quando pensa nos seus momentos por lá?

Zico – Graças a Deus realizei o sonho de jogar no clube do meu coração. Sou um privilegiado, abençoado por fazer parte da história do time que tem a maior e mais apaixonada torcida do mundo. Somos uma nação com mais de quarenta milhões de torcedores. Sigo vivendo, intensamente, a alegria de ter realizado, lutado e merecido tanto reconhecimento por ter liderado uma geração vitoriosa no Clube de Regatas Flamengo.

Gente que Faz – Foram três Copas do Mundo com a Seleção. Em duas delas, com alta expectativa, sobretudo 1982, quando caímos para a Itália. O quanto lhe incomoda – ou incomodou – o fato de terminar a carreira sem o maior título que um jogador pode conquistar?

Nada me incomodou e nem me incomoda. Sempre honrei a camisa do meu país. Sou um dos quatro brasileiros a figurar no Hall da fama da FIFA (os outros são Pelé, Garrincha e Didi). Em 2016, fui eleito por especialistas e por internautas como o maior batedor de faltas da história. Fui considerado o terceiro melhor (atrás de Pelé e Garrincha) jogador do século XX pela Federação Internacional de História e Estatística do Futebol (IFFHS). Sou o maior artilheiro da Seleção Brasileira na história das Eliminatórias da Copa do Mundo com 11 gols. Eu vesti com orgulho a amarelinha em 89 partidas e marquei 66 gols. Então, não há nada que me incomode em relação a isso.

Gente que Faz – Em confrontos com a Dupla Grenal, você poderia nos relatar algumas de suas experiências que lhe marcaram?

Zico – Participei de jogos marcantes contra o Grêmio e o Internacional. Em 1982, pelo Campeonato Brasileiro, diante dos tricolores, fiz o gol de empate aos 44 minutos do segundo tempo, no Maracanã. Foi um gol importante que nos deu moral para irmos a Porto Alegre e sagrarmos bicampeões nacionais quando, na semana seguinte, vencemos o terceiro jogo da série final por 1×0. Contra o Inter, também no Maracanã, em 1987, fomos tetracampeões Brasileiros, vencendo pelo mesmo placar. São alguns jogos marcantes para mim.

Gente que Faz – No governo Collor, você chegou a assumir a pasta de esportes entre 1990 e 1991. O que você pode nos contar acerca desse período? Você nunca mais teve pretensão para voltar à política?

Zico – Fui Secretário Nacional de Esportes de 1990 e 1991. Foi uma experiência positiva e pude dar minha contribuição. O projeto mais conhecido foi a “Lei Zico”, criada para modificar a estrutura do futebol brasileiro, reduzindo o poder dos clubes em relação aos jogadores. Dentre os temas regulamentados pela lei Zico, figuram, por exemplo, a criação do Conselho Superior de Desportos – entidade destinada a fazer cumprir a própria lei – e a organização da Justiça desportiva. Ela foi promulgada alguns anos depois, mas teve real influência na criação da ‘Lei Pelé’, vigente até hoje. Atualmente, não tenho pretensões políticas.

Gente que Faz – Recentemente, duas passagens suas por países sem tradição no futebol chamaram bastante atenção; no Iraque, como treinador da seleção, e na Índia, à frente do FC Goa. Como foram essas experiências?

Zico – No Iraque, tive problemas contratuais e um clima totalmente adverso para trabalhar. Infelizmente não tinha confiança nas pessoas com as quais trabalhei na seleção e lamentavelmente tive que entrar com uma rescisão contratual. Foi uma experiência ruim. Na Índia eu trabalhei no FC Goa. Foi um trabalho bom e conquistamos o vice-campeonato da Superliga da Índia, com vários brasileiros no time.

Gente que Faz – Você tem um filho que seguiu os passos de jogador de futebol, o Thiago. Carregar o seu sobrenome – e, consequentemente, a expectativa de jogar como você – foi algo que ajudou ou prejudicou ele no meio futebolístico?

Zico – Em relação ao Thiago, fiquei chateado em alguns momentos, pois faltou paciência para com ele em algumas situações. A cobrança deveria ser igual para todos, independentemente de quem ele é filho. Ele tinha e tem muita qualidade. Às vezes, há uma comparação desnecessária e maldosa, mas o Thiago tem uma cabeça tranquila e consegue levar numa boa. Apesar dos percalços, continua buscando seu espaço. Ele viajou para Dubai para participar da pré-temporada do Boa Vista, que disputará o próximo Campeonato Carioca.

Gente que Faz – Em relação ao seu atual momento, como comentarista de TV. Como é para você estar do outro lado, uma vez que, na época de jogador, muitas vezes as críticas partiam exatamente dos analistas de futebol? É mais fácil jogar ou analisar?

ZICO – Como profissional em campo ou à beira do gramado, sempre atendi a todos da imprensa com paciência e respeito. Sempre fui respeitado também. Dizem existir motivos óbvios para que comentaristas não sejam imparciais, o tal “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Graças a Deus, no Esporte Interativo temos total liberdade e sempre analisei – e analiso – futebol com respeito. Precisamos ter coerência nos comentários, pois é um esporte que mexe com a paixão do público. O bom comentário é aquele que agrada os conhecedores e não estressa os outros telespectadores. Evito comentários desnecessários e tento ser o mais compreensível possível. Às vezes dou minha opinião, mas sempre embasada em fatos. E, naturalmente, eu gostava mais de estar em campo.

Gente que Faz – Estamos às vésperas de mais uma Copa do Mundo e, novamente, nos cercamos de expectativa em relação ao hexa. Aprendemos algo com o vexame diante da Alemanha a ponto de nos colocarmos como favoritos em 2018?

Zico – Ao meu ver, a Seleção é mérito. Temos que ter sempre os melhores em cada função. Não tenho nada contra ninguém, mas sou favorável ao merecimento, ao resultado. Se a Seleção serve para dar espaço aos melhores, você precisa chamar os melhores da atualidade, independente do time que ele joga ou trabalha. O Brasil será sempre um dos favoritos ao título. Material humano de qualidade nós sempre tivemos em todas as funções e posições. Após a humilhação contra a Alemanha, o Tite fez com que voltasse a dar liga entre a seleção e o torcedor. Hoje, os nossos jogadores têm bagagem internacional. Isso pode ajudar a reduzir a ansiedade de uma Copa. Voltamos a confiar no hexa.

Gente que Faz – Se você tivesse que escolher o seu maior orgulho e sua maior decepção – seja como jogador, dirigente, treinador – quais momentos você escolheria?

Zico – Eu vivi e vivo intensamente a vida. A minha maior decepção foi não ter disputado a Olimpíada de 1972, em Munique. Cheguei a pensar em desistir do futebol naquela oportunidade. A maior alegria foi ter vestido a camisa 10 do Flamengo. Graças a Deus, ajudei a conquistar títulos para meu time do coração, dentre eles, a Copa Libertadores e o Mundial. Eu era um torcedor em campo.

 

Fotolegenda

O empresário José Paulo Richter abraçou a ideia dos Craques Solidários e desde o último ano não poupa inspiração e expiração para que a iniciativa repita o sucesso desde a sua primeira edição.

 

Por João Carlos Dienstmann

Publicado na edição 37 da revista Gente que Faz

Fotos Objetivo Fotografia

 

 



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