Vivendo nas nuvens
Publicado em 22 de janeiro de 2018Ane Saraiva viveu um ano e meio no Templo Budista Chadgud Gonpa Khadro Ling, em Três Coroas. Escolheu ficar sem TV, revistas ou jornais e conviveu com apenas 50 pessoas, meditando diariamente, mergulhando para dentro de si mesma. Conforme ela, tratando com mais sabedoria seu bem maior, sua própria vida
Ane escolheu ficar sem TV, revistas ou jornais e conviveu com apenas 50 pessoas, meditando diariamente, mergulhando para dentro de si mesma, reavaliando, repensando e tratando com mais sabedoria seu bem maior, sua própria vida. Passado este tempo, Ane fundou, em Porto Alegre, a Sati Consciência Plena. Aqui, um pouco de sua transformação, outro tanto do templo Budista de Três Coroas, e o imperativo de fazer a diferença em sua existência, com suas próprias palavras.
“Durante toda minha vida, não recordo de algum período em que não carreguei comigo algumas perguntas como: Por que existimos? Qual o objetivo desta vida? Qual o sentido da vida? Sim, mesmo nas lembranças mais remotas ainda com 5 ou 6 anos, o existencialismo habitava simultaneamente entre uma brincadeira e outra.
Como todas as outras pessoas, conforme ia crescendo, aumentavam as responsabilidades até que na adolescência – maioridade, entrou na minha vida a expressão “carreira profissional”. E agora? O que fazer? Exercer alguma atividade em troca de dinheiro, para auxiliar no orçamento da família, conquistar independência e adquirir ainda mais aprendizados através da experiência desta nova fase adulta.
Sempre muito criativa, fui estudar comunicação e experimentei diversos postos, funções e atividades, até que encontrei na produção e gestão cultural a sensação de entregar algo transformador para o mundo, que até então era o que mais se aproximava das questões primordiais da primeira infância. Eu via que no mundo, apesar de suas infinitas belezas, havia muito sofrimento, de todos os tipos, muita bagunça e confusão. Eu não podia simplesmente virar as costas para isso, sentia que precisava fazer algo para ajudar com uma pequena parcela na organização.
Até que um dia, saindo da função de dirigente de cultura da minha cidade natal, passei por um período de ócio criativo ainda no meu antigo apartamento em Porto Alegre, onde brotou a coragem que me faltava, para realizar um desejo que carregava há anos: tirar um período sabático.
Naquela época, eu já era Budista praticante há alguns anos, convivia com vários amigos da Sangha e tinha feito vários retiros, então tomei fôlego e submeti minha candidatura que fortuitamente foi aceita para passar o período de 40 dias.
Quarenta dias que se transformaram em um ano e meio, um dos períodos que julgo ter experimentado a mais intensa felicidade, bem-estar, compreensão e clareza em toda minha vida.
Até hoje, não há um dia sequer que não lembre com frescor da sensação de acordar ainda amanhecendo, sentir a brisa gelada da serra, o cheiro forte da floresta, os sons constantes da natureza e a paz esmagadora daquela atmosfera, que invade e preenche os dias de significado e de um regozijo sem razão, uma alegria genuína apenas por ser, por existir.
A paisagem exuberante, tanto em elementos naturais como nas edificações de arquitetura tibetana, de suas cores intensas que contrastavam com o verde dos jardins, pinheiros e araucárias, dos canteiros sinuosos de flores multicoloridas recebendo constantes visitas de distintas borboletas, com o azul anil do céu, o amarelo do sol e das bandeiras de oração dançando conforme a direção do vento, com a sinfonia dos pássaros, sapos e grilos formando uma orquestra. O sino que anuncia a prática matutina, os mantras, tambores e flautas e o cheiro de incenso que é único e exclusivo do grande Templo Vermelho La Kang.
Na saída, as primeiras palavras de bom dia em direção ao café da manhã, a alegria de compartilhar a primeira refeição com a grande família Vajraiana, já com o corpo mais acordado e mente mais tagarela. Em seguida a primeira escala de trabalho do dia.
E assim os dias se preenchem em meio à correria, às infinitas demandas de trabalho exigidas na manutenção daquele extenso espaço de prática, convivência e atendimento aos turistas, onde tudo é tão urgente, tão rápido. Tudo nos faz lembrar da prática o tempo todo e depois de um período, os ensinamentos preciosos já tomaram conta de todas as atividades e áreas da vida. De acordo com o karma e aspiração de cada um, as fichas vão caindo, fica cada vez mais evidente a necessidade de dar um significado aos dias, apreciar ao máximo antes que ele escora pelos dedos. Uma vida humana é um sopro, um ano e meio é um piscar de olhos. Não há data marcada para ser feliz, felicidade é hoje, gratidão é hoje, agora. Gratidão do privilégio de ter vivido essa experiência intensa tão de perto é para sempre.
E então, convicta de ter encontrado minha casa no mundo, inicia-se o próximo momento que norteia esta existência. Costumo acreditar que as coisas não mudam até tenham servido para ensinar alguma coisa. Na linha do tempo, estamos em novembro de 2015, quando os primeiros sinais auspiciosos começaram a aparecer. Alguns amigos, com quem esporadicamente ainda tinha contato presencial, começaram a buscar por informações sobre budismo e meditação, afim de lançarem luz na sua confusão mental, insatisfação latente e inexplicável. Uns dois ou três no começo, depois mais alguns até que estes começaram a indicar meu nome para terceiros e quando percebi, estava sendo procurada semanalmente pelas pessoas mais aleatórias que desejavam viver com mais sabedoria e lidar com suas emoções. Como uma simples aluna que sou, indiquei os livros introdutórios mais conhecidos, calendário de palestras e retiros para iniciantes. As pessoas queriam ouvir de mim, de uma pessoa normal cheia de problemas e dificuldades como elas, como lidar e integrar as práticas na vida. Compreendi e aceitei. Encontrei a resposta que fui buscar quando resolvi tirar um período sabático. Como poderia conciliar a maior causa que sempre habitou meu mundo, o autoconhecimento, com uma atividade profissional possível na vida mundana.
Contemplando a impermanência de todos os fenômenos, sabendo que nada é estável e duradouro, fiquei dividida e abalada de ter que deixar minha rotina no templo, que nesta altura também já tinha se tornado minha zona de conforto, para retornar à cidade e iniciar um projeto do zero. A maneira que encontrei de atender ao chamado, foi buscando uma formação reconhecida em Mindfulness, a metodologia laica do momento, que tem ajudado há milhares de pessoas que sofrem de ansiedade ao redor do mundo. Com o aval da ciência teria uma boa adesão na cidade grande. Em março de 2016 cortei as raízes do apego com grande dificuldade, fiz as malas e deixei meu amado quarto que ficava embaixo das rodas de oração. Sabendo que a morte de uma coisa é o nascimento de outra, com o peito cheio de coragem e dúvida para mergulhar no desconhecido, me atirei de cabeça acreditando no que carregava no coração, de que finalmente poderia entregar algo significativo ao mundo.
Passei pela formação, retornei a Porto Alegre e iniciei o processo de transformar meu propósito pelo viés empreendedor. O projeto piloto foi impactante, compartilhado por alguns daqueles amigos que deram impulso neste movimento lá atrás e a partir de então, tudo tem fluído tão natural e espontaneamente como a essência da respiração, o maior objeto de nossa investigação nas práticas.
Em pouco mais de um ano de existência, já tivemos mais de 160 alunos, cases de sucesso, seres humanos mais conscientes e plenos habitando este planeta. Apenas por redescobrirem algo que sempre esteve lá, sua natureza de sabedoria compassiva.
Para encerrar este breve conto de como foi e tem sido viver nas nuvens, despeço-me deixando uma das possíveis definições de Mindfulness em Inglês, Consciência Plena em Português: “A consciência que surge ao prestarmos atenção de maneira intencional ao que se passa no momento presente, de maneira gentil e sem julgamento”, por Jon Kabbat Zinn.
“Honre o mistério de sua vida e sua própria magnificência. Boa prática.”
Ane Saraiva
Para saber mais e acompanhar nossa agenda de eventos e treinamentos em Mindfulness,acesse: www.facebok.com/saticonscienciap
Por Neiva Schneider
Fotos: Gilson Wingist e acervo pessoal