A psicanalista Viviane Sapiro aborda “traição”
Publicado em 26 de fevereiro de 2017“Há um olhar que desnuda,
Que não hesita em afirmar
Que existem fidelidades perversas
E traições de grande lealdade
Este é o olhar da alma.”
Nilton Bonder – A Alma Imoral
Seres vivos são sexuados exceto as bactérias, estrelas-do-mar, esponjas ,planárias ,celenterados ,eucariotas unicelulares e filos de invertebrados . Já o coito ,exclusivo aos animais sexuados , nem sempre tem por fim a reprodução. Acasalar -se várias vezes por dia apenas por prazer não é condição exclusiva do homo sapiens.Golfinhos,leões, elefantes-marinhos, chimpanzés , baleias entre outros bichos também se divertem com o sexo.
O sexo é, por natureza, da natureza . O diferencial para nós é que nessa fronteira onde entra o humano, o sexo liga-se à incrível fertilidade do imaginário, hoje já não mais ungido pelas leis simbólicas consideradas tabus ultrapassados. E no vale tudo que faz uso de um corpo limitado pela condição biológica, prevalece o modo perverso de funcionamento que é mortal.Por isso surgem as surpresas e variações oportunizadas por um imaginário que só o humano é capaz de fazer. No idílio do sexo pelo sexo em si incluem-se as aberrações sexuais, as mutilações, as doenças venéreas, as incuráveis ,os assassinatos, uma variedade enorme de crimes hediondos, a pedofilia, a necrofilia, a bestialidade, os estupros. Freud dizia que o tabu do incesto era o último umbral da cultura… Mas os incestos estão aí com toda a sua força. A humanidade sabe disso, mas mesmo assim…
Um periódico gaúcho dentro do politicamente correto, em dirigindo todos os holofotes com incentivo e admiração ao sexo pelo sexo, quanto mais múltiplo e diversificado, pela via da performance e do espetáculo com muita purpurina, nenhuma culpa ou medo obedecendo a regra do vale tudo e quanto mais desinibição, melhor. O curioso é que simultaneamente, no extremo oposto, esse mesmo periódico insiste em publicações que dão um cunho moralista a respeito da sexualidade. Refiro-me a uma ampla reportagem sobre detetives e métodos de flagrar amantes secretos (hóooo..). Ou seja, aqueles amantes que não se expõem e não levam a público sua intimidade, a nudez de seus corpos às câmeras e os holofotes, refugiando-se em privados e sórdidos esconderijos. ..
No mundo de hoje, fugir ao recurso da imagem, expondo verdades onde a imagem não está é no mínimo imperdoável. E aí entram em ação os detetives particulares. Aqueles que se dispõem a invadir e a bisbilhotar a vida alheia irrompendo do espaço público ao privado pelo velhíssimo método do gozo voyeur de “espiar”. Adotam as técnicas mais precisas desde disfarces, emboscadas, fotos furtivas, câmeras escondidas e rastreamento pela internet movidos pelo mais nobre dos motivos: o “fazer o bem ao outro” através do ato de desmascarar e trazer à tona. Tudo isso justificado pela moral implícita ao exercício dessa nobre profissão que se dedica a livrar-nos do mal do ilícito .
Mas o que é que eles querem afinal ? Gozar de uma maneira mais refinada que os animais? Detetives que investigam traições comportam-se como as crianças que espreitam as alcovas pelos buracos de fechaduras . Seguem sendo menininhos de pijama na calada da noite, investigando o quarto dos pais para ver se desvendam o misterioso milagre da origem e da vida. Ignorantes de suas razões, gozam mais que os amantes caçados sem trégua, até mais do que aquele que os contrata e paga com dinheiro e dor pelo desconhecimento sua participação ativa nisso: a vítima inocente que sempre é surpreendida . Que deplorável a posição alienante de vítima que ao assumir-se como tal deixa de se reconhecer na relação de troca e responsabilidade com o parceiro naquilo que aproxima ou que distancia . A condição de vítima precisará eternamente de algum algoz que a justifique …
Posteriormente, o mesmo periódico nos brindou com mais uma pérola de artigo sobre traição. Em uma suposta variante sobre tema da sexualidade, a reportagem desafia a inteligência e a sensibilidade de muitos associando a matemática das estatísticas ao voyeurismo, trazendo percentuais precisos de quem trai mais, homens ou mulheres e, pasmem, as razões e os porquês da traição resumidos em uma lista impessoalizada e repetitiva de prováveis e precisos motivos. Percentuais que tentam capturar o incapturável, tanto quanto o detetive tenta fotografar o invisível, se é que ainda nos resta algo da subjetividade por definição inapreensível como imagem, como número e como corpo.
Não. Não é o sexo que procuram capturar. O sexo pelo sexo é visível, palpável, filmável, fotografável, examinável. Os conceitos morais já se renderam há muito, às estatísticas e aos detetives. E estes, sem saber, estão no encalço de outra coisa. Estão no encalço do Ilícito. Aliás, como o nome já diz, Ilícito e também traiçoeiro é o que faz a mendiga Penia no dia em que Zeus dá um banquete em honra ao nascimento de Afrodite através do mito grego mencionado em “O Banquete” de Platão lá pelo ano de 380 AC. Enquanto os deuses festejavam o acontecimento no palácio de Zeus, Poros, o deus da abundância , ali se encontrava, junto a outros convidados. Após o jantar, eis que surge Penia, a Pobreza, mendigando como de costume e por ali permanece, espreitando de longe Poros que, embriagado de tanto néctar, acaba por adormecer no jardim. Penia, entretanto, sóbria e atenta, planeja, através de sua penúria, gerar uma criança com Poros.
Aproveitando-se, então, da frágil condição do deus Poros, a Pobreza através de um ato ilícito deita-se sobre ele engendrando o filho de ambos. Assim nasce Eros, o amor , em sua essência e origem sempre marginal e ilícito… Clarice Lispector diria: ” Às vezes no amor ilícito está toda a pureza do corpo e alma, não abençoado por um padre, mas abençoado pelo próprio amor”. O amor é uma criação da cultura e justamente por isso, vem para nos afastar da natureza do sexo pelo sexo. O sexo atravessado pelo amor é outro e não está em nenhum livro de biologia … Não cabe no amor nada que destrói o homem e põe em risco a humanidade. Se formos capazes de amar estaremos sempre nos alternando nessa abertura entre a pobreza (Penia) e a riqueza (Poros) que abre espaço para o amor de casais casados, solteiros, pais, filhos, amigos, netos, avós ou do modo como for, sem jamais saber exatamente o porquê pois que foge de todas as listas e classificações enquanto portadores da falta que nos humaniza. Sim ,o mundo moderno vem relegando o amor a um lugar marginal e temos que protegê-lo para não morrer.
Soube de uma mulher que casou consigo mesma de véu e grinalda. Na hora do sim, fez os votos, abençoou-se e beijou sua imagem no espelho. O narcisismo não é amor . Pelo contrário revela uma incapacidade de amar. Um documentário recente, “A Teoria Sueca do Amor“, mostra que na Suécia, primeiro país a promover o sexo livre pela década de 50, é assustador o numero de casos de pessoas que optam por ficar sozinhas. A solidão sueca parece testemunhar o esgotamento resultante do encontro apenas de corpos sem alma. Em Memórias de Minhas Putas Tristes, Garcia Marques elege a velha e sábia prostituta para professar que “o sexo é o que nos resta quando o amor já não mais nos alcança”. Caminho mais curto para morrer-se completamente só .Mortes anunciadas pelo odor exalado na vizinhança, revelando corpos mortos em decomposição solitários em suas casas–túmulo, onde ninguém sente falta. Não há falta. Também na Suécia, mulheres solitárias sentem-se completas. Não pedem ,não mendigam. Compram esperma pela internet como a qualquer outro produto de consumo e se auto injetam sentadas na borda fria de uma banheira, com a imensa vantagem de ter a silenciosa autonomia de decisão e a absoluta precisão que o contato físico e amoroso com um homem não possibilita. Evitam uma decisão, os acordos e a cumplicidade expressa ao se planejar e conceber um filho a dois. Evitam o encontro com o amor. Nem Penia, nem Poros. O resultados são crianças sem Eros, engendradas de seringas, de sementes sem corpo, sem história e sem alma. Crianças exiladas por suas mães da função paterna frequentemente ficam psicóticas, autistas. E por aí também, morre o amor.
É no encalço deste já velho e em estado terminal amor que a sociedade atual tenta encontrá-lo e, se possível eliminá-lo para sempre. Nos diz Carlos Drummond de Andrade: “O amor é primo da morte, e da morte vencedor, por mais que o matem (e matam) a cada instante o amor”. Assim, se quiseres que o amor sobreviva e com ele a continuidade da vida, não perguntes aos detetives nem aos estatísticos onde encontrá-lo, perguntes sim aos poetas, aos sábios, aos amantes, a pessoas com esperança na vida como eu ou você.
PS :Para quem quiser seguir nesse trilhamento, existem filmes maravilhosos sobre o amor: A Letra Escarlate, As Pontes de Maddison, Amor à flor da Pele, Jornadas da Alma, Um Toque de Infidelidade, Guarda Chuvas do Amor, Lê Ciel dans Une Chambre, entre outros.
Por Viviane Jacques Sapiro
Fone 051 99828715
Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto alegre
Especialização em Psicologia Clínica Hospitalar
Membro do Serviço de saúde mental do Hospital da Criança Conceição
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Publicado na edição 31 da revista http://gentequefaz.com/