Revisitando Lolita
Publicado em 26 de fevereiro de 2017
“Pela manhã ela era Lô, não mais que Lô,
com seu metro e quarenta e sete de altura
e calçando uma única meia soquete.
Era Lola ao vestir os jeans desbotados.
Era Dolly na escola.
Era Dolores sobre a linha pontilhada.
Mas em meus braços sempre foi Lolita.”
Lolita, ou A confissão de um viúvo de cor branca
de Vladmir Nobokov
Quem vai ao Museu do Prado em Madri não deixa de se impressionar com a feroz magnitude do quadro de Goya que mostra Kronos, o deus grego representante do tempo devorando seus filhos. A grandiosidade da obra de Goya não põe sombra à outra, que poderia assemelhar-se plasticamente como uma versão escrita dela: Totem e Tabu de Sigmund Freud. Se os gregos, entre outros povos antigos, foram responsáveis pela invenção dos mitos, Freud os reinventa através do Pai da Horda Moderno. O mito psicanalítico foi feito para dar conta da mesma pergunta: Por que pais devorariam seus filhos impedindo-os precocemente de tomarem seu lugar no mundo e com isso pondo em risco de extermínio toda uma civilização? A exemplo de Kronos, que se autoriza arbitrariamente a tomar posse e a matar seus filhos, o mítico Pai da Horda voraz e tirânico queria as mulheres só para si, das quais desfrutava livremente conforme seus instintos até o momento em que os filhos se rebelam e o matam como única forma de dar um basta e preservar-se da destruição e desaparecimento. A partir de então criam-se as leis que regulamentam o acesso e a posse ao corpo entre membros da mesma família, ou seja, a proibição ao incesto. Nenhum dos herdeiros remanescentes se oferece a substituir ao Pai da Horda, pelo risco de repetir os mesmos abusos. Assim, esse lugar vazio, deixado pelo pai morto, presta-se à representação do pai: nasce o Pai Simbólico originário do assassinato do pai primordial e consagrado pela instituição da lei que preserva a cultua da destruição.
Desse modo, percebemos casos de sedução e incesto povoando os escritos de Freud desde os primeiros tempos da psicanálise, e que pertencem também aos tempos mais arcaicos da presença humana na face da terra.
O que quer dizer seduzir? Significa fazer cair em erro, corromper, desonrar. Entre 1895 e 1897, portanto em plena era vitoriana, Freud trabalha e escuta histórias semelhantes a esta, confidenciadas pelas pacientes histéricas. Correlaciona ataques, desmaios e paralisias sem origem orgânica à possibilidade traumática dessas mulheres terem sido seduzidas por seus pais apontando para o risco do retorno ao Pai Tirânico, o Pai da Horda, não bem morto, talvez apenas adormecido.
Tais histórias de infância continham detalhes e requintes tão apimentados e sórdidos que beiravam aos folhetins da baixa pornografia e deixavam em péssima condição frente à sociedade os nobres e elegantes cavalheiros de Viena. Afinal o macho forte e sedutor estilo folhetim era sempre, ou na maioria das vezes, o pai. Como seria possível que aqueles senhores com uma reputação irrepreensível que passavam por Freud pelas ruas e cafés vienenses fossem na verdade pérfidos pedófilos incestuosos?
A teoria da sedução feita por um estarrecido e pasmo Freud é embasada nesses depoimentos femininos, que abordavam como real “a cena em que o sujeito (geralmente uma criança) sofre passivamente por parte de outros (a maior parte das vezes um adulto) propostas ou manobras sexuais”, nas palavras de Freud.
Estudos psicanalíticos e antropológicos descobrem a importância da sedução na origem da renúncia ao sexo na consanguinidade, no parentesco e na hierarquia, abafando a mais poderosa primitiva fonte das paixões. Assim, pela renúncia ao incesto ingressamos na cultura.
Para Freud, eram ainda os acontecimentos da atualidade que desencadeariam as neuroses, evocadas por alguns traços associativos e a recordações dos primeiros fatos de infância ligados sempre à sedução por parte do pai. Contudo, na medida em que elucida a sexualidade infantil, põe em dúvida a veracidade das cenas de sedução (“já não mais acredito na minha neurótica”), colocando-as como produto de recordações fantasmáticas, inventividades psíquicas, abrindo espaço para as realidades psíquicas, para as fantasias inconscientes favorecidas pela sociedade repressiva de sua época. Viria como um dado estrutural, um dos mitos próprios do enigma da existência, da origem, do aparecimento da sexualidade. E por aí, Freud devolve a justa dignidade dos senhores de Viena separando fantasia de realidade.
Mais tarde, inspirado no mito grego do Édipo Rei, extraído da Tragédia de Sófocles, em que a rainha Jocasta desposa seu filho Édipo, Freud denominou de Complexo de Édipo esse estágio entre os três e os cinco anos, em que a menininha se comporta de modo sedutoramente coquete com o pai e o menininho um verdadeiro Don Juan com a mãe. Freud vê no amor edipiano e na sexualidade algo intrínseco que vem da relação entre os pais e tão importante que ultrapassa as questões biológicas e influencia definitivamente a formação da subjetividade da criança com consequências na vida de adulto.
“O desejo dos pais preexiste ao desejo da criança e lhe dá forma. É inevitável e absolutamente lógico que a criança faça de seus pais objeto de sua primeira escolha amorosa. Todavia esse amor não deve permanecer fixado nesses primeiros objetos.”, diz Freud.
Esse amor ao qual se renuncia em nome da lei do pai “não dormirás com tua mãe/pai” que a criança interdita também a mãe/pai: ” não reintegrarás o teu produto!” É a base para que a criança seja capaz de amar para além de si mesma e de seus pais. “Ela (a criança) deve se contentar em tomá-los mais tarde como modelos e passar deles para outras pessoas, ela deve se separar de seus pais”. O acesso à lei do pai é suficiente para produzir um apagamento no ímpeto do gozo entre pais e filhos.
Alice Lindell, a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Caroll, realmente existiu. Conviveu com Lewis Caroll reconhecido professor de matemática na velha Oxford vitoriana. Mesmo fotografando várias meninas seminuas, jamais teve na sua época sua condição mental posta em dúvida. Um de seus descendentes intrigados e preocupado com a reputação do célebre tio-avô, resolveu pesquisar qual o lugar que ocupava a nudez de uma criança na época. Redescobriu o que já se sabia: as crianças eram consideradas anjos puros e intocáveis. E a condição angelical é justamente não ter sexo, basta ver as pinturas renascentistas onde aparecem anjos. Lewis Carol via anjos e não ninfetas. Portanto, ele não seria um pedófilo. E a prova disso talvez seja o destino da própria Alice. A pequena Alice Lindell intocada e pura, eternizada pelos textos de Caroll e não pelas páginas policiais, seguiu sem ser retirada de seu País das Maravilhas até poder sair de lá como uma adulta saudável e bem resolvida.
Passamos a 2016. Como pensar que hoje o mito edipiano mais do que estruturante referência na subjetivação humana toma espaço na cena real e se transforma em realidade? Há pouco, periódicos do mundo todo noticiaram um processo nos Estados Unidos da América do Norte onde uma mãe luta na justiça pelo direito de casar com o próprio filho: não é mito, é realidade. Nossa tendência, no sentido de tolerarmos melhor o que nos causa angústia, é percebermos com um certo distanciamento ou identificando os fatos entre celebridades ou entre as famílias mais desprovidas. Vejamos Charles Chaplim e Roman Polanski com abuso de menores de idade e o mais célebre deles, sem dúvida, é o de Woody Allen com sua enteada Soon-Yi Previn–a, filha adotiva de sua então parceira Mia Farrow.
No discurso social moderno, há um pedido explícito de proteger a vítima criança do agressor adulto cuja legislação vem avançando nos últimos anos via criação da Lei da Palmada, Conselhos Tutelares. Em paralelo, na prática clínica escutamos cada vez menos rememorações e fantasias. Em lugar, um aumento considerável de histórias reais de horror e pânico que parecem se repetir, acrescentando aqui e ali detalhes desalentadores.
Inspirada numa história real, uso em epígrafe uma fala do protagonista de Lolita, romance escrito em inglês e publicado em 1955. A estarrecedora narrativa é feita por um professor universitário de Literatura, na meia-idade, chamado Humbert-Humbert. Obcecado por Dolores Haze, de 12 anos, com quem ele se torna sexualmente envolvido após se tornar seu padrasto, “Lolita” é o apelido privado para Dolores.
Nossa Lolita brasileira chega à emergência do hospital pediátrico num domingo à tarde trazida pela mãe desesperada, após ouvir da filha uma confidência séria, quando seu marido, padrasto da menina, sai para comprar refrigerante. Este padrasto, desempregado nos últimos meses, fica em casa com a menina e o irmão de dois anos enquanto a mãe trabalha fora: “Quando está frio, ela diz, a gente se deita no carpete da sala, o maninho dorme no quarto ao lado. O pai pega as almofadas e um cobertor e ficamos assim deitados assistindo à televisão. Aí ele põe a mão pra dentro da minha roupa e pede pra eu fazer o mesmo com ele…”. A menina se cala, mas a mãe insiste que há mais. Acha que deve denunciar o padrasto ao Conselho Tutelar. Diz que essas coisas são complicadas. Chora falando de surpresas e decepções até ser bruscamente interrompida por Lolita: “Não quero que prendam meu pai…”!!
Histórias de sedução, de estupro, são difíceis de se escutar num mundo em que a criança não mais ocupa um lugar de ingenuidade e inocência. Por outro lado, as ninfetas do grego ninfas, são fadas sem asas, leves e delicadas, espíritos habitantes dos rios, lagos, riachos, florestas, prados e montanhas cuja delicadeza e florescimento enternecem, mas também aguçam a volúpia e aí passam a ocupar o outro lado do vocábulo: de uma deusa do rio Estige, um rio da invulnerabilidade, um rio infernal.
A nostalgia pela era vitoriana com seus prós e contras justifica-se, pois assegurava em seu laço social a condição de reprimir as pulsões sexuais proibidas. As questões sexuais vinham à tona no tempo adequado da maturidade sexual com a escolha de parceiros compatíveis, e o que não vinha à tona pela consciência aparecia através dos sonhos, fantasias, atos falhos, romances familiares e sintomas. Uma vez derrubada a repressão, derrubou-se também a capacidade de simbolizar através das formações psíquicas. Resultado: nossos fantasmas ganharam vida e partiram para o ataque. A humanidade parece ter perdido a capacidade de poder recuar de seus ímpetos naturais e respeitar as leis simbólicas sustentadas no valor da palavra. Não mais está garantido que o genitor ou um substituto deste como um padrasto, seja capaz de ocupar o lugar de Pai isento para não querer gozar com o corpo de um filho ou enteado.
Qual o equívoco nas boas intenções de se evitar a violência com as crianças? O equívoco está em não perceber que leis, as modernas do politicamente correto como a ”Lei da Palmada”, na tentativa de salvaguardar a infância, expõem e desprotegem mais ainda porque substituem e anulam a lei do pai asseguradas desde o Édipo. Na lei da palmada, a mão antes de bater toca o corpo da criança e segue presente em todos os demais e infinitos tipos de gozar com o corpo até matá-la ou ser morto por ela. A lei da Palmada retirou de cena a lei do pai: “não dormirás com tua mãe/ não reintegrarás o teu produto”. Se sai a subjetividade do desejo, entra o gozo ao corpo da criança. Com isso, convoca-se os loucos a se banquetearem das crianças.
Ao desconhecer, mas ainda assim, legislar sobre o psiquismo humano, abolindo leis ancestrais eficazes, potencializa-se a destrutividade do incesto e demais crimes contra a criança. Cai o pai digno, simbólico confundido com o pai tirano. O substituto à queda do pai simbólico é o pai patologizado que entra em cena ocupando o seu lugar de espancador, pedófilo, estuprador, perverso, não raro agora: o pai da horda ressuscitado e reencarnado em qualquer um. Põe-se abaixo toda a tradição, herança que estão necessariamente relacionadas as questões paternas relegando nossos antepassados por quem fomos educados a um lugar perverso. Quando antes havia o mito do incesto, hoje temos incestos e, consequentemente, mesmo que a criança sobreviva ao incesto, ela sempre morre. Um incesto é sempre e também um infanticídio e um parricídio. É por isso que Lolita, surda ao “não dormirás com seu pai” diz à mãe: ”não quero que prendam o meu pai!” Ou seja: “Quero continuar sendo gozada por ele, nessa condição perversa que lhe permite colocar sua mão por debaixo de minha e minha mão por debaixo da roupa dele”. Morre a menina e seu futuro: fica o semblante que exige ser gozado na condição de objeto.
Noivas crianças, escravidão, comércio de crianças em várias culturas e religiões e em várias partes do mundo desafiam os conceitos morais e destroem a infância. Meninas entregues como esposas a homens adultos apontando a velocidade da passagem do tempo, o lugar da criança como objeto de consumo e o evitar do incesto pela via da retirada precoce do lar paterno, onde a lei não opera como tal.
Na trágica condição da consumação de um incesto, revela-se, num mundo de consumismo e consumistas, que consome a infância. Se lei paterna é eficaz, salva nossa Lolita e todas as outras. Citando Lacan em seu seminário sobre a ética: “a única função do pai, em nossa articulação é ser um mito”. Sendo assim, que o pai possa retornar a sua dignidade de mito.
“Há homens vivendo em nossa época que acreditamos estão muito mais próximos do homem primitivo, muito mais do que nós, e a quem portanto consideramos como seus herdeiros e representantes diretos”.
Sigmund Freud em Totem e Tabu
Recomendação de Leitura
A Garota: Uma vida na sombra de Roman Polanski, de Samantha Geimer
Biografia da menina que aos treze anos esteve ao centro do infame caso de assédio sexual do cineasta Roman Polanski. Elei passou horas tirando fotos de Samantha – no deque com vista para Hollywood Hills, na residência de Jack Nicholson, em um balcão de cozinha, de topless em uma banheira. Vinho e drogas foram consumidos, equilíbrio e inocência foram perdidos, e a vida de uma jovem foi alterada para sempre. Nestas memórias abrasadoras e surpreendentes, Samantha Geimer, ‘a menina’ no centro do infame caso de assédio sexual de Roman Polanski, rompe um silêncio de trinta e cinco anos para contar sua história e reflete sobre os acontecimentos daquele dia e as repercussões por uma vida inteira. Durante a apresentação do seu livro de memórias, Samantha afirma que há “muito tempo” perdoou o cineasta.
O filme de 1997 dirigido por Adrian Lyne e estrelado por James Mason como Humbert Humbert e Sue Lyon como Dolores “Lolita” Haze, é baseado no romance do mesmo título, sobre um homem de meia-idade que torna-se obcecado com uma menina adolescente. Lolita é um dos mais importantes romances do século XX. Polêmico, irônico, tocante, narra o amor obsessivo de Humbert Humbert, um cínico intelectual de meia-idade, por Dolores Haze, Lolita, 12 anos, uma ninfeta que inflama suas loucuras e seus desejos mais agudos. Nabokov compôs a maior parte do manuscrito — que ele mesmo chamou de “bomba-relógio” — entre 1950 e 1953. Nos dois anos seguintes, ouviu recusas de cinco editoras norte-americanas (“pura pornografia”, disse-lhe uma). Em 1955, foi finalmente aceito por uma obscura editora francesa, a Olympia Press. No final de 1955, Lolita aparece entre os melhores livros numa edição do Sunday Times. A repercussão cresceu; em agosto de 1958, foi finalmente publicado nos EUA. Em setembro, alcançou o primeiro lugar na lista de mais vendidos. O sucesso faria com que Nabokov deixasse de dar aulas para viver apenas de sua literatura.
Por Viviane Jacques Sapiro
email viviane.jacquessapiro@gmail.com
Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
Especialização em Psicologia Clínica Hospitalar
Membro do Serviço de Saúde Mental do Hospital da Criança Conceição
(Seguir outros textos da autora pelo google, facebook e site da APPOA)
Publicado na edição 32 da revista http://gentequefaz.com/