Memórias não tão póstumas de WOODY ALLEN
Publicado em 16 de fevereiro de 2016Por Marcos Frank
Listas de preferidos. Eis aí um assunto que movimenta qualquer discussão acalorada no bar ou no happy hour com os amigos. Quais os melhores filmes de Hitchcock? Ou os melhores restaurantes do Rio Grande do Sul? Quem nunca deu sua opinião sobre as suas músicas favoritas dos Beatles? Ou mesmo as séries de TV de que mais gosta? Cada um tem as suas preferências. Não à toa, fazer listas desse tipo costuma ser uma divertida brincadeira que, embora seja uma maneira de mensurar as nossas preferências muito particulares, também serve para horas e horas de debate – de preferência regadas a muita cerveja e diversão. Coisa que o escritor inglês Nick Hornby nos apresentou de maneira exemplar no seu ótimo livro – que mais tarde viraria filme – Alta Fidelidade.
Por que esta mania tão comum a todos nós não seria também o hábito de certo baixinho, judeu, de óculos, eventualmente neurótico e metido a diretor de cinema? Pois é, Woody Allen – que conta, em sua filmografia, com cerca de 40 títulos, quase todos imperdíveis na opinião deste humilde repórter – surpreendeu ao declarar recentemente ao jornal britânico The Guardian que, em seu Top 5 de livros preferidos de todos os tempos, estava o brasileiríssimo Memórias Póstumas de Brás Cubas, do bom e velho Machado de Assis. É claro que, para nós, Machado tem um valor incomensurável, mas para um americano? E não qualquer americano… Woody Allen!
Allen explicou que o que mais chamou a atenção foi a originalidade da obra. Tanto que não acreditou que o livro pudesse ter sido escrito no final do século 19. “É tão moderno que eu poderia pensar que tinha sido escrito ontem”, brincou. O diretor de Manhattan e Match Point afirmou ter recebido o livro de um desconhecido pelo correio. Junto da obra, um bilhete: “Você vai gostar disto”. “Só o li porque era curtinho”, observou. “E fui pego de surpresa por uma obra original, charmosa e muito divertida”.
E esta impressão a respeito de “Memórias póstumas…” não é exclusividade do nova-iorquino. A história do autor-defunto (ou seria defunto-autor?) que inicia o livro exatamente no seu enterro para voltar no tempo e contar toda a sua vida recheada de insucessos por meio de tiradas irônicas e ao mesmo tempo filosóficas, muito longe do idealismo romântico tão tradicional na época, também surpreendeu a crítica quando de seu lançamento. Não à toa, muitos estudiosos dividem a obra de Machado em duas fases, sendo este o livro que dá início à segunda fase.
Joaquim Maria Machado de Assis escreveu a supracitada obra em 1882, quando começava a consolidar-se como escritor. Após quatro livros essencialmente românticos – Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) –, Machado já se sentia mais à vontade para eventuais arroubos estilísticos. Tanto que o romance, cheio de idas e vindas, com críticas à sociedade da época, pessimista como só ele, contando assuntos espinhosos como a diferença de classes – o Brasil recém caminhava para a completa libertação dos escravos – e o adultério, fez de Machado uma verdadeira estrela de seu tempo.
Na época, o Brasil, com sete milhões de habitantes, passava por profundas mudanças. A produção da cana-de-açúcar começava a dar sinais de cansaço, ao mesmo tempo em que a Proclamação da República não parecia mais uma realidade tão distante. Tudo isso somado aos estragos causados pela Guerra do Paraguai transformou-se num terreno fértil para que Machado destilasse toda a sua ironia, tornando-o quase um precursor de uma visão de mundo mais crítica e reflexiva, que predominaria por um longo tempo até chegarmos à literatura contemporânea. A sua obra, por vezes difusa, de estrutura insólita e um tanto extravagante, fugia do estilo repleto de linearidade de autores de seu tempo. Isso para citar apenas alguns exemplos da importância deste livro imperdível.
Para a professora do curso de Letras da Univates Rosane Cardoso, é interessante notar como pouco a pouco os estrangeiros vão descobrindo o que o brasileiro já sabe há muito tempo: que Machado de Assis é um dos escritores mais significativos da literatura ocidental. “Harold Bloom, reconhecido e polêmico crítico literário da Universidade de Harvard, encantado com a obra, incluiu-a no livro Gênio, que versa sobre os 100 escritores mais geniais da literatura. Susan Sontag também se deliciou com a mesma obra”, observa. Rosane até brinca ao dizer que essa descoberta de Allen quase mereceria um “elementar, meu caro”, de tão óbvia.
Mas a docente não credita apenas à falta de conhecimento dos estrangeiros essa certa demora em descobrir a literatura daqui. De acordo com ela, faz pouquíssimo tempo que as obras de Machado começaram a receber boas traduções, o que, de acordo com a sua impressão, é o mínimo que o autor merece, já que este fato permite uma abstração mais aguda de seus textos. “Assim, não há como evitar que mais e mais leitores passem a entrar nesse mundo de ceticismo e ambiguidade, talvez aprendendo a olhar a vida com um raro e indecifrável riso de mofa”, brinca.
Já o ex-presidente da Academia Literária do Vale do Taquari (Alivat) Marcos Frank credita ao pioneirismo da obra a atenção dispensada por Allen. “Pode-se dizer que Machado foi um precursor do realismo mágico, que mais tarde seria consagrado com outros escritores sul- americanos como (Jorge Luís) Borges, (Júlio) Cortázar e (Gabriel García) Marques”, observa. “E não é só isso. Ao criar um anti-herói cheio de defeitos e vícios, ele conseguiu se adiantar ao Modernismo pela aproximação com o indivíduo e até do Existencialismo de (Jean Paul) Sartre e (Albert) Camus ao constatar que não há mais o bem e o mal absoluto e sim as nuances”.
Já de acordo com a doutora em Letras e escritora Ivete Kist, o que surpreende não é o fato de Allen colocar a obra entre as cinco preferidas, o que para ela seria algo até normal, dada a importância do livro: “A grande questão está na barreira colossal que a nossa literatura enfrenta especialmente pela falta de domínio, por parte dos estrangeiros, da língua portuguesa. Fora isso, no exterior se sabe muito pouco do Brasil que não seja o carnaval e o futebol”, destaca.
Posto tudo isso, não é de estranhar que “Memórias póstumas…” tenha chamado a atenção de Woody Allen. Ora, o diretor também é irônico, critica (e muito) a sociedade, fala, ainda que indiretamente, da morte, analisa quase psicologicamente seus personagens. Tudo mais ou menos como fez Machado na época. Não se sabe ao certo quando foi que o diretor tomou contato com o clássico do brasileiro. Pode ser mera coincidência, mas é possível encontrar semelhanças entre o livro e os filmes do diretor. Se este repórter iniciou este texto falando de listas, finaliza-o com um Top 5. Os cinco sinais de uma provável influência machadiana na obra de Allen. É apenas uma brincadeira, claro, como aquelas feitas na mesa do bar, com os amigos. Mas bem que poderia ser verdade!
1) A temática da morte e o sujeito hipocondríaco: as memórias de Brás Cubas só são póstumas porque, evidentemente, ele morreu! E morreu tentando legar para a humanidade o “emplasto Brás Cubas”, medicamento sublime que serviria para aplacar a “melancólica humanidade”, tornando a vida melhor, especialmente para os hipocondríacos. Woody Allen vive um sujeito que padece desse mal em diversos filmes. Hannah e suas irmãs e Dirigindo no escuro, só para citar dois. A temática do sujeito que morre e retorna foi explorada com muito bom humor em Scoop – O grande furo.
2) Citações literárias: se nos filmes de Woody Allen nomes como Truman Capote, Scott Fitzgerald e Marshal McLuhan – naquela que talvez seja uma das sequências mais engraçadas de toda a filmografia do nova-iorquino, o filme Noivo neurótico, noiva nervosa – aparecem com frequência – o último Meia noite em Paris é um verdadeiro desfile do tipo -, em Brás Cubas, em meio às mais diversas reflexões do personagem título, quem dá as caras são escritores mais antigos como Jonathan Swift, Sthendal, Shakespeare e até o astrônomo Laplace.
3) Elementos fantasiosos: só o fato de um morto falar e voltar à vida já seria motivo suficiente para a fuga da realidade, mas Brás Cubas dedica um capítulo inteiro aos seus delírios pré-morte que quase o tornam contemporâneo de Salvador Dali e André Breton, os quais só surgiriam para o mundo das artes 20 anos depois. Já Allen, em filmes imperdíveis como Zelig e, principalmente, A rosa púrpura do Cairo – no qual um ator salta da tela de cinema para se encontrar com uma integrante da plateia, numa citação a Pirandello – brinca ao produzir uma série de situações inverossímeis.
4) Conversando com o interlocutor: Woody Allen utiliza tal recurso em uma série de filmes. Em um dos mais recentes, Tudo pode dar certo, o protagonista, interpretado por um Larry David turrão e amargurado – espécie de alter ego do diretor – dirige-se à câmera diversas vezes para uma conversa “cara a cara” com o espectador. Pois Brás Cubas também tem esse hábito. E o utiliza com a mesma ironia do nova-iorquino, como, por exemplo, no capítulo treze, ao dizer que não vai falar da personagem Marcela como deveria, já que estamos diante de um livro “casto”. Ou mesmo no capítulo 97, quando, depois de uma surpreendente constatação, ele observa: “você leitor, sinto que estremeceu”.
5) A temática do adultério: é bem verdade que o tema não chega a ser exatamente uma novidade dentro da literatura universal. No caso de Allen, são vários os filmes que tratam do tema – Match Point, Vicky Cristina Barcelona e Você vai conhecer o homem dos seus sonhos – apenas para citar três casos recentes. Em Brás Cubas, o defunto-autor ocupa várias páginas discorrendo a respeito de sua paixão adúltera e proibida por Virgília, esposa do político Lobo Neves.