Corpo, alma e cicatrizes da Adele brasileira

Quem conhece a cantora e compositora britânica Adele sabe que é preciso ter vigor e muito talento para calçar seus sapatos e subir no palco entoando suas canções à sua imagem e semelhança. Talvez seja preciso também ter vivido sofrimentos similares para transmitir potência no canto. É esse o caso da hamburguense Stephanie Lii, cover da Adele que é sucesso no país e no exterior

Antes de ler este texto, pare aqui e assista ao vídeo (clique aqui). A semelhança beira o inacreditável. Quem não lê a legenda dificilmente diferencia Stephanie Lii, natural de Novo Hamburgo, da cantora britânica Adele. Esse trabalho foi resultado de um período de estudo intenso para interpretar fielmente os trejeitos de Adele. Foi quase um ano de preparação, mergulho em entrevistas e imersão de dois meses em Londres. No Brasil, além do Rio Grande do Sul, o espetáculo Hello Adele Tribute passou pelos estados do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Também esteve em Portugal, Holanda, Inglaterra, Itália e México.

A identificação da brasileira com a inglesa vai além da música e da aparência física ou do tom de voz, envolve a forma de ver a vida, de sofrer por amor. “Ela é muito romântica, eu também. Nós nascemos em datas muito próximas: ela no dia 4 de maio e eu no dia 5, então as personalidades acabam ficando muito parecidas”, comenta Stephanie. Além disso, como ela mesma diz, ambas têm o corpo fora dos ditos padrões.

Se há preocupação em relação aos shows agora que Adele emagreceu? “O projeto é da época que ela era gordinha. Se em algum momento eu precisar passar por esse processo, sem problema nenhum, porque eu sou artista. Se tiver que me adequar, eu vou”.

Hello, it’s me

“Stephanie sem Adele é uma mulher como várias do Brasil, com uma história de muita luta. A diferença é que às vezes estou na frente das câmeras. Comecei a cantar aos 9 anos e cheguei a fazer shows na China durante seis meses até ser convidada a encarnar Adele nos palcos”, comenta ela. Em razão do trabalho sem hora para acabar, a filha de 12 anos mora com os avós paternos, o que conta com os olhos marejados.

Com a angústia de quem quer colocar para fora algo que ficou calado por muitos anos, expõe a maior dor de sua vida como quem finalmente entendeu que a culpa jamais foi sua. “Stephanie é uma mulher que muitas vezes ficou em silêncio por não querer se envolver em polêmicas. Já foi atacada em rede social por ser feminista. Já foi vítima de pedofilia”.

“É a primeira vez que falo sobre isso. Foi um padrasto. Lembro de cenas e flashs. Nunca quis que as pessoas me rotulassem por uma causa em si, e sim pelo meu talento e o meu trabalho. Mas se eu não puder usar essa voz pra ajudar outra criança e outras mulheres com a fama que conquistei, com a visibilidade que tenho hoje, de que adiantaram?”, indaga a cantora.

Sua própria salvadora

Stephanie conta que quando entendeu que o que aconteceu era errado, não teve ao seu lado quem mais precisava.

“Não tive apoio da minha mãe. Ela tinha uma relação tóxica e entendia que era manipulação minha. Mulheres colocam a cara a tapa. Isso não nos define. A gente é muito maior”.

Hoje, ela procura passar essa mensagem aos seus fã clubes. “Não quero que as meninas achem que depressão, abuso sexual e várias outras coisas que acontecem muito no meio feminino sejam banalizadas ou caladas, porque a gente sente medo, se sente culpada”.

“Se expor é uma coisa muito dolorida. A gente tem medo das consequências”, desabafa. Diz ter vivido uma relação abusiva que deixou mais feridas. “Falaram pra mim que eu mereci o que me aconteceu na infância. Fui muito atacada como mulher pela roupa que eu usava, que era dita promíscua. O fato de eu interagir com muitas pessoas, tanto homens como mulheres, era motivo para ser rotulada como oferecida, entre outras coisas que quem me conhece sabe que não sou”.

Ela relata ter esperado apoio das pessoas, o que gerou grandes frustrações. Hoje, assim como canta em Turning Tables, de Adele,tem sido sua “própria salvadora”.

“Cada um oferece o que tem dentro de si. Tive que fazer terapia para entender sobre tudo o que me aconteceu e perdoar. Perdoar não quer dizer esquecer e nem calar. Mas nos livra da dor”. Ela diz ter transformado o sofrimento em sua força. “É minha forma de me expressar artisticamente. Sei que fui vítima, mas não escolho ser mais”.

Stephanie como Stephanie

Um novo olhar para o universo feminino

Comecei o texto sobre nossa Adele do sul e resolvi ‘dar um google’ no assunto.  Apareceu, então, uma entrevista que amei no ‘Fala Feminina’, plataforma criada pela excelente jornalista Fátima Torri, à frente da Fatto Comunicação, durante a pandemia. Um conteúdo bem escrito ‘salta aos olhos’, mas, mais que isso, prende a atenção! Fui da abordagem que busquei à Evani Wollf, que também tive o prazer de conhecer e foi uma delícia ler sua ‘quase biografia’, também por Fátima. E não consegui parar.

Chamou-me atenção o conteúdo, as entrevistadas, a qualidade dos textos e o quilate de quem colabora com o site. Vi profundidade, humor, sapiência de vida. Aliás, o Fala Feminina que tem  ‘a saúde das pessoas sábias” (na própria descrição da página) inaugurou com a “saúde alegre” de quatro mulheres fantásticas, Tania Carvalho, Zoravia Bettiol, Lya Luft e Esther Grossi, abordando a chegada da velhice e seus desdobramentos na vida das mulheres.

Fátima Torri, uma mulher também à frente do seu tempo, bonita, com conteúdo, empreendedora, conta que esse espaço começou a existir quando ela nasceu. “Na minha casa, na escola, na rua, com os amigos, não me via sendo ouvida. Fui criada por uma geração de mulheres de cabeça baixa para lavar, para limpar o chão, para cozinhar. E de homens que ocupavam tanto espaço físico ao sentar quanto espaço de fala. Isso sempre me intrigou”.

Agora, por que ‘Fala Feminina’? “Porque a fala é o oposto do falo. Ela não se impõe, ela acolhe, não tem preconceitos ou pudores. Ela não aponta, ela circula. Ela fala, mas principalmente escuta. Nesse espaço nós buscamos dar voz a todas essas falas contidas (ou exibidas) das mulheres que são as nossas inspirações”, discorre Fátima.

Não tive dúvidas. Liguei para Fátima, que logo autorizou a publicação de “Corpo, alma e cicatrizes da Adele brasileira”. Fátima entrevistou, em sua própria casa, Stephanie Lii, durante a quarentena. Junto ao conteúdo, acrescentamos o link para a entrevista que está disponibilizada no youtube.

 

Texto de  Fátima Torri| Fotos divulgação

Publicado na edição 53 da revista Gente que Faz

 

 

 

 

 

 



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