Maria Berenice Dias, a juíza dos afetos

A primeira mulher que conseguiu ingressar como desembargadora no Tribunal de Justiça gaúcho não poderia deixar de marcar sua carreira por atos emblemáticos. E não deixou. Aposentada do Poder Judiciário, continuou sua defesa às minorias num escritório de advocacia

Foto: Tiago Trindade

Um dia depois de se aposentar da magistratura gaúcha, na qual atuou por 35 anos, Maria Berenice Dias instalou-se no seu escritório de advocacia. Era o primeiro escritório brasileiro, aberto em Porto Alegre, a apontar na placa a novidade: defesa do direito homoafetivo. Berenice, como gosta de ser chamada, carrega nos ombros o compromisso de ser porta-voz da população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais (LGBTI). Não nega que faz isso com até certo sacrifício, pelo tempo que dispensa à bandeira, mas o fardo não é pesado para quem crê nas relações de afeto. “Eu acredito no amor, nas pessoas”, declara, com firmeza.

Foto: Tiago Trindade

Berenice é pioneira, inovadora, rompedora de modelos. Foi a primeira mulher a ingressar como desembargadora no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 1973, e nunca se esquivou da chance de abrir e descobrir novos caminhos no apoio às minorias. Defendendo direitos às pessoas de mesmo sexo unidas por vínculos afetivos, já fora da magistratura, Berenice passou a formalizar uniões, por meio de contratos particulares, dentro do seu escritório. “Saíram boatos que tinha uma capela com as cores do arco-íris”,  diverte-se. Não tinha capela, mas ela colocava uma toalha de renda na mesa e, por sua conta, servia espumante e bem-casado aos noivos ou noivas. “Queria mostrar o significado que aquele momento tinha para a vida deles”, explica.

Em nível de país, o marco para as uniões homoafetivas ocorreu em outubro de 2011. Em julgamento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Para Berenice, foi como se a corte tivesse estendido na mesa a toalha de renda, abrindo precedente para que tribunais e cartórios de todo o país adotassem conduta semelhante. O ato, na opinião da advogada, representa um dos grandes avanços dentro do que chama de “revolução do século XXI”. “No mundo, o tema evoluiu de maneira mais rápida do que no Brasil. O casamento gay começou na Holanda em 2000. No  Brasil, em 2000, foi quando começou a se enxergar alguns direitos. Nestes 14 anos, viemos de uma absoluta invisibilidade para a possibilidade de se casar”, comemora.

“Sempre me vi hostilizada. Nunca fui promovida por merecimento.”

Os avanços que dão mais vigor à luta foram conquistados, no entanto, a muito custo e por um trabalho praticamente solitário. Dentro do Poder Judiciário, Berenice conta que, mesmo entre as mulheres juízas e desembargadoras, o trabalho em busca de mais direitos às minorias nunca foi fácil. “Sempre me via um pouco sozinha, hostilizada, discriminada. Nunca fui promovida por merecimento, nunca ocupei cargo nenhum”.

Mas quem disse que as dificuldades seriam barreiras? Pelo contrário, foram combustíveis. A partir daí, a desembargadora começou a se fortalecer buscando elementos fora do judiciário. Aproximou-se do movimento de mulheres, criou o Jornal Mulher e o JusMulher, um serviço voluntário de atendimento ao público carente. E usou, sim, sua posição de autoridade para se fazer ouvir. “Eu falar tem mais eco do que um gay falar e eu assumi o compromisso de ser porta-voz de todos estes segmentos vulneráveis”.

Foto: Tiago Trindade

As ideias de Berenice também foram parar em páginas de um punhado de livros, que ocupam espaço significativo de uma das estantes do seu escritório. Uma das obras leva o título “União homoafetiva”. O termo homoafetividade foi criado por ela em 2000. “O que identifica todas as famílias é o comprometimento afetivo, com responsabilidade. Então, pessoas do mesmo sexo com vínculos afetivos também são família. O sexo casual não interessa ao Direito, mas o sistema jurídico protege os vínculos de afetividade”, explica. Este jogo de palavras gerou outra pequena revolução ao conseguir a mudança de concepção do tema.

“Acho que nossos netos ainda vão ter que usar burca”

Entre as lutas encabeçadas por Berenice no momento está o pleito para que o Brasil tenha uma lei que criminalize a homofobia e assegure direitos à população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais (LGBTI). Em 14 países do mundo o casamento, por exemplo, é permitido por força de lei, enquanto que no Brasil os avanços têm sido frutos de decisões judiciais. A advogada acredita que, se depender dos poderes Legislativo e Executivo no país, será difícil progredir. “Temos um legislador horroroso, conservador, preconceituoso”.

Foto: Tiago Trindade

Na visão da advogada, o aumento da bancada evangélica na Câmara Federal é o maior percalço. “Este movimento me assusta muito. Acho que nossos netos ainda vão ter que usar burca no Brasil”, ironiza. Se as perspectivas de mudanças na esfera parlamentar são pessimistas, a desembargadora aposentada escolheu caminhar por outra rota. A Comissão Especial da Diversidade Sexual, ligada à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e presidida por Berenice, debruçou-se sobre o problema da ausência de lei e elaborou em 2011 um estatuto amplo para dar conta da lacuna na legislação.

A ideia é que o projeto ingresse no Congresso Nacional, por meio da iniciativa popular. Para que o estatuto seja votado, é necessário angariar 1,4 milhão de assinaturas. O caminho, no entanto, continua cheio de pedras. Até o momento, cerca de 60 mil rubricas foram reunidas. A advogada acredita que a baixa adesão se dá pela resistência das pessoas em se comprometer com a causa. “Se tu abraças a causa do negro, do deficiente físico, é porque tu és solidário, mas se tu abraças]a causa do LGBTI, é porque tu só podes ser gay. Eu passei a vida inteira sendo rotulada de homossexual. Metade das pessoas acham que eu sou e a outra metade tem certeza”, brinca. Os interessados em assinar a petição virtual podem acessar o site www.estatutodiversidadesexual.com.br.

“Não namoro homofóbico”

Mãe de três filhos, 66 anos, casada por cinco vezes, Berenice mantém uma restrição clara em termos de relacionamento: não abrir espaço no coração para pessoas com pensamento contrário ao que sempre lutou. “Não namoro homofóbico”, avisa. Entusiasmada pelo fato dos assuntos de homossexualidade estarem inseridos nos meios de comunicação; defensora das paradas gay; a advogada mora numa rua tranquila próxima ao Parque da Redenção, um dos pontos mais democráticos da Capital.

No parque, caminha todas as manhãs, há mais de 20 anos. É um dos únicos momentos em que consegue ficar afastada dos seus dois escritórios. Um deles está instalado na cobertura do apartamento, considerada por ela a parte nobre da casa. Lá, estão suas estantes com livros; fotos das quatro gerações de juízes na família; quadros, troféus, homenagens à sua carreira. Lá também exercita a escrita e a argumentação. Tem centenas de artigos e mais de 20 livros publicados.

Foto: Tiago Trindade

A rotina de trabalho inicia por volta das 9h e segue até a madrugada. As centenas de e-mails, que faz questão de responder pessoalmente, é o que tem demandado grande parte do seu tempo. Os assuntos tratados virtualmente são os mais variados possíveis: alunos pedindo sugestões de temas para os trabalhos de conclusão de curso; advogados solicitando ajuda para casos; desabafo de homossexuais; convites para palestras (por semana, ela recusa dezenas de pedidos).

Duas funcionárias ajudam a dar conta das tarefas no escritório de casa. Elas também são responsáveis por abastecer e atualizar cinco sites que servem como um banco de dados e plataforma de informação sobre o direito homoafetivo; estatuto da diversidade sexual; Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), além da página do escritório de advocacia e o portal que agrega todo tipo de conteúdo envolvendo Maria Berenice Dias, a defensora dos afetos.

Foto: Tiago Trindade

 

Currículo

– Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Direito das Famílias e Sucessões.

– Primeira desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

– Vice-presidenta nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), do qual é uma das fundadoras.

– Presidenta da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB.

– Membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Estado do Rio Grande do Sul, representando os mais diversos segmentos da sociedade gaúcha.

– Pós-graduada e Mestre em Processo Civil pela PUCRS.

– Lidera o movimento nacional para criação de Comissões da Diversidade Sexual ligadas à OAB em todo Brasil.

– Criadora do Jornal Mulher e JusMulher – serviço voluntário de atendimento jurídico e psicológico às mulheres carentes.

– Ocupa a 37ª Cadeira da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul.

– Única gaúcha indicada pelo Projeto “1.000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz 2005”.

– Recebeu o prêmio Direitos Humanos 2009, na categoria “Garantia dos Direitos da População LGBT”, a mais alta condecoração do Governo Brasileiro outorgado pelo Presidente da República.

– E outros.

Publicado na edição 20 da revista Gente que Faz

 



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